COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Divulgamos aqui o texto que Dom Antônio Possamai preparou para as comemorações dos 25 anos do Projeto Padre Ezequiel, entre 27 a 30 de junho. O Projeto é uma importante iniciativa da Diocese de Ji-Paraná, em Rondônia, voltada para a agroecologia, as práticas de saúde popular, a formação em políticas públicas e para a defesa e promoção dos direitos de crianças e adolescentes.

 

Embora Dom Antônio trate especificamente da experiência do Projeto Padre Ezequiel, suas reflexões podem ajudar a pensar alguns elementos presentes na luta em defesa da Catedral São João Bosco, em Ji-Paraná. Suas sábias palavras destacam o valor da história e da memória: “Vocês fazem muito bem em não esquecer a história. Esquecer a história é apagar da memória os feitos dos nossos antepassados, das pessoas que acreditaram numa causa, por ela suaram e deixaram uma trajetória, que, com as devidas adaptações, deve ser seguida. Esquecer a história e as pessoas que nela acreditaram é matar pessoas e projetos”.

                   

Sua análise sobre o momento político atual, tanto na sociedade brasileira como na Igreja Católica, ajuda a situar um pouco o que vivemos: “Mas, ouso dizer que é preciso estarem atentos. Há duas ameaças, já tornadas realidades: o comportamento dos nossos poderes públicos e a forma como nossa Igreja está se comportando.

O PROJETO PE. EZEQUIEL surgiu num tempo promissor da nossa história, a saber, na sociedade ansiosa por libertação do regime totalitário e o explodir de um povo ansioso por mudanças; na Igreja o tempo forte pós conciliar, pós as Conferências de Medellin e de Puebla com o consequente explodir da Teologia da Libertação. Não digo que estes tempos desapareceram. Talvez estejam sendo encobertos por forte camada de poeira ou de nuvens. A poeira, a fumaça, as nuvens impedem de ver as belezas da criação e as doenças da mesma. Na Igreja Católica temos a impressão de um cansaço e a consequente volta para a sacristia, isto é, uma Igreja voltada para dentro, para a autocontemplação e para a ostentação. Nasociedade, com a chegada ao poder do povo por meio dos dois últimos presidentes, ficou a impressão que não é mais necessário acreditar na força e na luta do povo organizado por seus direitos.” 

 

Eis aqui o texto na íntegra.

 

Projeto Pe. Ezequiel – 25 Anos

Por Dom Antônio Possamai.  

     

“Estou muito agradecido por me terem convidado para esta festa.

 

Vocês fazem muito bem em não esquecer a história. Esquecer a história é apagar da memória os feitos dos nossos antepassados, das pessoas que acreditaram numa causa, por ela suaram e deixaram uma trajetória, que, com as devidas adaptações, deve ser seguida. Esquecer a história e as pessoas que nela acreditaram é matar pessoas e projetos. O Projeto Pe. Ezequiel não é parecido com um monumento de pedra ou de cimento armado. O monumento de pedra, quando muito, fica desgastado pela ação da natureza. De certa forma é monumento morto. O Projeto Pe. Ezequiel é vivo; nasceu, desenvolveu-se; foi entendendo o tempo. É por isso que é possível celebrar esta festa. PARABÉNS!

 

Na Igreja nós conservamos a história dos nossos heróis e a muitos deles os chamamos de santos. Normalmente estas pessoas, a seu tempo e conforme o contexto em que viveram, levaram Jesus Cristo e o seu tempo a sério. Na sociedade também costumamos guardar a memória dos nossos antepassados. Alguns, nem todos, merecerem esta memória. Outros deveriam ser banidos da memória. Certos nomes de ruas, certos monumentos, certos nomes de cidades, certas menções nos livros de história deveriam ser apagadas para maior glória da pátria e para uma seleção de nomes que podem ser apresentados em nossas escolas, como modelos a serem seguidos.

 

Nesta nossa Rondônia há dois projetos que são frequentemente citados: o PROJETO RECA, gerado por pequenos agricultores, com sua filosofia própria, e o PROJETO PE. EZEQUIEL RAMIN. Não são iguais, porém, ambos se caracterizam por acreditar que o pobre é inteligente, criativo e capaz de realizar e de indicar que o caminho a ser seguido para conseguir a libertação e a consequente felicidade de todos os brasileiros não é o caminho do latifúndio, da dominação dos poderosos, da exploração do trabalhador até mesmo recorrendo à escravidão. O que estes projetos, criação de gente pobre ensinam, é o de acreditar que a solidariedade e não a concentração dos bens da criação é a solução e a resposta para tantos desafios que atualmente enfrentamos em nosso país. Ensinam também, contrariamente ao que ensinam as doutrinas capitalistas liberais, que é, sim, possível produzir sem agrotóxicos, que é possível curar sem ficar escravos dos laboratórios internacionais, que é possível educar os jovens sem o recurso às prisões.

 

O PROJETO PE. EZEQUIEL está festejando os seus 25 anos de caminhada. reservo-me o direito de não citar aqui nomes de tantos heróis e heroínas que no decorrer destes 25 anos fizeram o Projeto viver, avançar, atualizar-se conforme o contexto histórico foi exigindo. São muitos e muitas; não posso cometer o pecado, mesmo que seja involuntário, de esquecer alguém. Entretanto, não posso deixar de fazer especial menção, não a uma pessoa, mas a uma instituição. É a MISEREOR, entidade da Igreja Católica da Alemanha. Quando naqueles primeiros anos da Diocese de Ji-Paraná, víamos chegando multidões de migrantes, em sua quase totalidade vítimas do quase total abandono dos governantes que promoveram tal migração sem lhes garantir condições de vida digna, nossa Igreja não podia ficar insensível, indiferente, ou contentar-se a transmitir a eles uma doutrinação religiosa sem compromissos com a vida plena. Acreditou e abraçou a causa da “educação da fé”, fé a de Jesus Cristo: comprometida para que todos tivessem vida plena. Foi refletindo, dando passos; foi ajudando aquele povo a acreditar na necessidade de crer um no outro, de se organizar em pequenas associações, progredindo para algumas centrais de associações. Tinham como objetivo defender-se dos atravessadores que na hora de adquirir a produção rural, enganavam no peso e no preço da mercadoria. Foi, sem dúvida, um grande sucesso. Ao mesmo tempo foi dado o incentivo para o nascimento do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, do Movimento dos Pequenos agricultores, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, e outras organizações.

 

Entretanto, considerando que o povo era muito pobre, desprovido dos meios de sustentação, veio em nosso socorro a MISEREOR que, por seu representante, o Alfredo, nos ajudou a montar o Projeto. Ele seguiu sendo assessorado por aquela entidade até os dias atuais. E continua dando, em parte, sua assistência econômica. Aos católicos e povo da Alemanha desejo que chegue nosso profundo e cordial agradecimento.

 

As diversas coordenações que foram se sucedendo através desta não tão curta história, foram pessoas que amavam a causa. Posso dizer, foram verdadeiros místicos, isto é, pessoas que “vestiram a camisa” da causa. Foram criativos; não se acomodaram; foram até inventores, pois fizeram surgir tantas novas iniciativas no campo da saúde, com suas diversas escolas, com a multiplicação de pequenas farmácias, de hortas de plantas medicinais, a multiplicação de agentes de saúde formados em suas escolas e que hoje estão presentes e atuantes em muitas regiões desta vasta Amazônia, e outras; foram inventores com a criação das escolas para agricultores, ensinando o trabalhador rural a diversificar, a melhor aproveitar o que a natureza lhe fornece; foram sensíveis ao ponto de perceber a grande porcentagem de analfabetos que migravam para a região. O setor de alfabetização de adultos criou e sustentou mais de uma centena de grupos de alfabetização seguindo o método libertador do Educador Paulo Freire. Os monitores voluntários foram numerosos e muitos alfabetizados prosseguiram na caminhada e chegaram até a completar cursos universitários. E não se limitaram a estes setores nossos amantes do Projeto. Estiveram atentos ao desafio do MENOR. Diante do menosprezo com que nossos governantes teimam em dar à educação e às reformas sociais, multiplicaram-se os jovens sem escola, sem emprego, entregues à droga, à violência e à prostituição. O Projeto fez a sua parte. Foram surgindo diversos centros de educação do menor. Estes centros conseguiram reintegrar muitos jovens na família e na sociedade, mediante uma educação baseada no amor. Atividades de alfabetização, de complementação escolar, de profissionalização, de lazer, foram entre outros os meios de que o Projeto se serviu. Sem prisões, sem aceitar projetos de redução da idade penal. Com poucos recursos e com muito amor centenas de jovens se reencontraram como seres humanos e como filhos e filhas do Deus de Jesus Cristo, cujo nome é ABBÁ, Paizinho.

 

Percorreram 25 anos. Desejo que este caminho se prolongue por ao menos mais 25 anos, caso o Projeto ainda seja necessário. Poderá se extinguir caso nossa Amazônia receber administradores suficientemente inteligentes e capazes de virar de pernas para o ar esta triste história de desprezo pelo povo amazônida.

 

Mas, ouso dizer que é preciso estarem atentos. Há duas ameaças, já tornadas realidades: o comportamento dos nossos poderes públicos e a forma como nossa Igreja está se comportando. O PROJETO PE. EZEQUIEL surgiu num tempo promissor da nossa história, a saber, na sociedade ansiosa por libertação do regime totalitário e o explodir de um povo ansioso por mudanças; na Igreja o tempo forte pós conciliar, pós as Conferências de Medellin e de Puebla com o consequente explodir da Teologia da Libertação. Não digo que estes tempos desapareceram. Talvez estejam sendo encobertos por forte camada de poeira ou de nuvens. A poeira, a fumaça, as nuvens impedem de ver as belezas da criação e as doenças da mesma. Na Igreja Católica temos a impressão de um cansaço e a consequente volta para a sacristia, isto é, uma Igreja voltada para dentro, para a autocontemplação e para a ostentação. Nasociedade, com a chegada ao poder do povo por meio dos dois últimos presidentes, ficou a impressão que não é mais necessário acreditar na força e na luta do povo organizado por seus direitos. O sindicalismo, as centrais sindicais, o meio estudantil se encolheram, silenciaram. Quem está saindo às ruas nestes últimos dias não são as tradicionais organizações de luta, mas o povo cansado e desiludido, como quem diz que não tem o que esperar das tradicionais lideranças. Os mesmos atuais governantes trocaram seus públicos, a saber, deixaram de falar, gratuitamente, para as multidões de trabalhadores, omitem-se a dar audiências a índios e sem terras, para falar, dedicar tempo para os donos de bancos e para os representantes nacionais ou estrangeiros das grandes empresas. Enquanto isso, parte do nosso povo está feliz, calado e parado porque recebe a bolsa família e algumas outras concessões vindas de um poder que sempre mais anda fazendo aliança com os poderosos, mesmo que para tanto seja permitida a tomada das terras dos povos indígenas ou a expulsão dos pequenos agricultores de suas terras tradicionais, sempre em favor do deus ECONOMIA.

 

O Projeto Pe. Ezequiel tem cumprido sua missão de educador, de formador de mentes lúcidas e capazes de provocar mudanças em favor da vida plena para todos. Nunca foi e nunca deverá ser um projeto meramente assistencialista. Deve cumprir a sua missão da prática da não violência ativa, que foi a forma de Jesus agir. Porém, o Projeto deve estar atento e projetar dentro de uma visão mais atualizada e mais situada. Situada na região amazônica com suas características climáticas e de qualidade solo próprias nas quais não se pode continuar implantando formas e espécies de outras regiões, destruindo as fontes de vida que esta natureza nos concede. Neste sentido, também por suas origens cristãs, o Projeto deve exercer sua missão profética, profetizando contra o avanço da implantação de espécies (soja, cana, bois) que visam unicamente o maior enriquecimento do grande empresário, sempre em detrimento da educação do pequeno agricultor e sempre produzindo mais gente para as periferias urbanas e gente em situação de fome.

 

Que Pe. Ezequiel, martirizado porque acreditava nos povos indígenas, nos trabalhadores sem terra e nos seus direitos, nas Comunidades Eclesiais de Base, enfim, nos pequenos, despossuídos e abandonados, interceda junto ao Pai, em cuja casa certamente estará, para que o PROJETO que tem seu nome tenha vida abençoada, inteligente, criativa, longa e produtiva.

 

OBRIGADO!”

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