COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Confira artigo de Jacques Távora Alfonsin sobre os desafios de mais um Fórum Social Mundial, que teve início hoje (19), em Porto Alegre (RS). Leia na íntegra:

 

Por Jacques Távora Alfonsin*

Recomeça em Porto Alegre nesta terceira semana de janeiro de 2016, mais uma reunião do Fórum Social Mundial. Sem o número de participantes e sem a cobertura midiática das primeiras, o sucesso dessa iniciativa popular, sob todos os aspectos urgente e necessária, como um válido contraponto ao que predomina em Davos, vem sendo avaliado como declinante, assim medido, exatamente, só por aquele número e aquela publicidade.

Tanto por quem apoia, inspira e é inspirado por essa experiência mundial, estando desanimado por isso, como por quem dela debocha como retrógrada e avessa a todo o “progresso” patrocinado pelo capital e pelo mercado, comemorando o fato como prova do seu fracasso, esse diagnóstico parece bem equivocado.

Se o Fórum social perdeu grande parte da sua motivação e do entusiasmo com que foi inaugurado há quinze anos atrás, isso se deveu muito mais, salvo melhor juízo, a quatro das suas principais características que, em vez de serem reputadas como defeitos, são virtudes capazes de serem renovadas a cada uma dessas reuniões.

A primeira pode ser vista como um simples efeito dos limites humanos daquelas boas prestações de serviço que o Fórum desencadeia. Toda a continuada presença de gente militante, em favor de causas de defesa de direitos humanos, como debatidas e planejadas lá, é sabidamente trabalhosa, sofrida, entrecortada de algumas vitórias e grandes derrotas, consequência histórica do extraordinário e bem superior poder econômico à ela contrário. O conhecido “cafard” das trincheiras, essa melancolia resultante desse permanente combate, por vezes frustrante, vem minando a força dessa militância, aliás já envelhecida em grande parte. Isso não lhe retira o mérito, mas ela não é de ferro e precisa se renovar todos os dias pois, como se sabe, a injustiça social não tira férias. O Fórum serve de nova oportunidade para isso.

A segunda, paradoxalmente, resultou de algumas metas   sociais exitosas, apoiadas em reuniões passadas do Fórum, quando o empoderamento de movimentos sociais, unido a muitas outras organizações de defesa de direitos, fazendo pressão sobre os poderes públicos de muitos países,  conseguiu diminuir os índices de miséria e pobreza em grande parte do mundo.  Impôs até derrotas às conhecidas investidas norte americanas como a Nafta e a Alca para, na América Latina por exemplo, proteger melhor as economias locais. O problema reside agora numa visível hesitação de como proceder diante de uma crise econômica planetária, para enfrentamento da qual não basta a conservação do já conquistado, mas urge repensar as formas de se estabelecer no mundo todo um dos principais objetivos dos Fóruns passados: a conquista de uma economia efetivamente solidária.

A terceira pode derivar de uma constante histórica presente nas rebeldias populares.  Quando elas alcançam o poder, seja o privado seja o público, elas preferem o estabelecimento da ordem e a conservação desta, até pela força, à continuidade do espírito que as motivou e do movimento que lhes deu vida. As leis e as instituições dela garantes passam a ser o principal, e a realidade social sobre as quais elas dominam passam a ser o secundário. Como essa realidade é cambiante e varia independentemente da lei e das instituições, o estabelecimento das leis e das novas instituições esquecem que aquela foi, justamente, a fonte dos movimentos populares rebeldes postos em defesa de mudança da antiga ordem. Em nome da chamada “governabilidade”, então, a antiga ordem retoma o seu poder de dominação, como se fosse coisa nova, libertária, nos moldes desejados pelo movimento. A lei e as instituições, cheias de regras, formulismos, casuísmos, ritos e outros devidos processos,   retomam – se é que perderam algum dia – o seu poder de opressão e repressão, particularmente contra o povo pobre, vítima do capital. Nisso, o Brasil é um triste e lamentável exemplo. É de se esperar que o Fórum deste janeiro não se envergonhe de pautar e discutir essa infidelidade ético-política, imposta, não só a um dos seus principais objetivos, como a toda a nação eleitora do governo atual.

A quarta é o cenário todo das três primeiras. Para renovação eficaz dos seus objetivos, o Fórum social mundial há de se prevenir outra vez, como certamente fará relativamente à lei e suas instituições, contra uma tentação típica do capital que, em nome da liberdade, dá preferência à sua própria segurança, sacrificando a primeira em defesa da segunda. Com poder superior ao do Estado, invade o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, fazendo deles o  refém “legal”, escravo dos seus interesses e privilégios, como se esses e somente esses possam valer como existentes e legítimos. Enrola ideologicamente a lei e as instituições públicas, fazendo inclusive das exceções presentes em políticas compensatórias, a regra da sua superioridade.  Até em relação a essas, como acontece com a reforma agrária e a proteção do meio ambiente, manipula acomodações, concessões e licenças variadas, sem hesitar em compra-las, frequentemente… Quando não se impõe pelo poder jurídico, ultrapassa-o pelo político.

O Fórum Social Mundial tem consciência crítica muito clara disso. Se não pela sua experiência popular de militância por um conselho imbatível do próprio Jesus Cristo: “Ninguém prega retalho de pano novo em roupa velha; do contrário, o remendo arranca o novo pedaço da veste usada e torna-se pior o rasgão. E ninguém põe vinho novo em odres velhos; se o fizer, o vinho os arrebentará e perder-se-á juntamente com os odres, mas, para vinho novo, odres novos.” (evangelho de São Marcos, capítulo 2, versículos 21 e 22).

Ou, como dizia um velho militante das comunidades eclesiais de base, assíduas leitoras dessa inspiração radicalmente corajosa: não adianta trocar de maquinista, se o trem vai continuar andando nos mesmos trilhos.

* Procurador do Estado do Rio Grande do Sul (Aposentado). Mestre em Direito pela Unisinos. Professor de Direito Civil da Unisinos. Advogado e assessor jurídico de movimentos populares como o MST e ONGs ligadas aos direitos humanos: catadores e sem-teto, que defendem alimentação, moradia e ambiente saudável para o povo pobre. É coordenador da ONG "Acesso – Cidadania e Direitos Humanos", em Porto Alegre e integrante da RENAP. Publicou vários estudos sobre função social da propriedade e da posse, reforma agrária e solo urbano, assessoria jurídica popular e direitos humanos. Autor dos livros: "Das Legalidades Injustas às (I)Legalidades Justas: Estudos Sobre Direitos Humanos, Sua Defesa por Assessoria Jurídica Popular em Favor de Vítimas do Descumprimento da Função Social da Propriedade" pela editora Armazém Digital; "O Acesso à Terra como Conteúdo de Direitos Humanos Fundamentais à Alimentação e à Moradia" (Sergio Fabris, 2003).

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