COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Sob o tema “Haverá Justiça e Reparação? ”, evento reuniu autoridades e representações da sociedade civil organizada, em busca de respostas para andamento do caso

Por Steffanie Schmidt, colaboradora da Ascom - Cimi Regional Norte I

Edição: Carlos Henrique Silva - Comunicação CPT Nacional

Foto: Steffanie Schmidt, colaboradora da Ascom - Cimi Regional Norte I

 

A mobilização da sociedade civil pela apuração do caso que ficou conhecido como Massacre do Rio Abacaxis, no Amazonas, trouxe para o debate público a cobrança sobre o andamento do procedimento de denúncia dos envolvidos, ante à constatação do inquérito da Policia Federal (PF) da existência de provas e indícios do envolvimento de agentes públicos de segurança no crime.

O evento organizado pelo laboratório Dabukuri – Planejamento e Gestão do Território na Amazônia – espaço vinculado ao Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), aconteceu entre os dias 02 e 04 de agosto (quarta e sexta-feira), no auditório Rio Solimões, do Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais (IFCHS), com a memória do caso e atualização sobre o andamento dos procedimentos investigatórios.

Relembrando o caso

Uma série de torturas, ameaças e violações aos direitos humanos foram cometidas por policiais militares entre os meses de agosto e setembro de 2020, sob o pretexto de combate ao tráfico de drogas e à quadrilha que supostamente aterrorizava a comunidade.  No entanto, conforme relato da população e parentes das vítimas, a ação policial incluiu prisões ilegais, tortura, humilhações, ameaças, entre outras práticas que denotam a intenção de vingança pela proibição feita pelos comunitários ao ex-secretário executivo do Fundo de Promoção Social do Governo do Amazonas, Saulo Moysés Rezende Costa, de adentrar a Terra Indígena (TI) Kwatá Laranjal para a prática de pesca esportiva.

Ele esteve no local no dia 24 de julho de 2020, a bordo da embarcação Arafat e alega ter sido atingido por um disparo, fato que nunca foi comprovado. Dois dias depois, quatro policiais militares à paisana,  à bordo do mesmo, adentram o local, o que provocou confronto e dois policiais morreram, desencadeando a operação por parte do Governo do Amazonas.

A sucessão de acontecimentos que levou à execução de seis pessoas e deixou duas desaparecidas nas comunidades que vivem ao longo do rio Abacaxis e Mari-Mari, nos municípios de Nova Olinda do Norte e Borba (distante 135 km de Manaus), em agosto de 2020,  deixa clara a violação de direitos humanos cometida por agentes a serviço do Estado.

“Utilizar a estrutura pública para atender interesses pessoais é uma prática que percebemos na Amazônia em geral, seja na omissão ou em ações efetivas. Aliado a esse contexto, temos órgãos públicos federais sucateados e sem estrutura para cumprir sua missão. O caso da morte de Bruno e Dom, no Vale do Javari, demonstrou isso. A Comissão Pastoral da Terra lançou o relatório que apontou o aumento de conflitos no campo e, tudo isso, em um contexto de Amazônia que tem  a maioria dos deputados a favor do garimpo. É um grande desafio somar forças para seguir denunciando”, afirmou o ex-deputado José Ricardo, que também participou da mesa de abertura. Na ocasião do mandato, integrou o trabalho de apuração do caso, no âmbito do coletivo.

No último dia 28 de abril, o ex-secretário de Segurança Pública do Amazonas, coronel Louismar Bonates, e o coronel da Polícia Militar Airton Norte, foram indiciados pela Policia Federal. Ao todo, cerca de 130 policiais, entre civis e militares, suspeitos de participar das ações, são investigados. Antes disso, seis delegados chegaram a passar pelo caso, sem um resultado concreto.

“A PF fez o indiciamento de duas pessoas, ou seja, existem provas e indícios para acusar. O MPF se encontra em demora para apresentar a acusação e houve troca de procurador do caso. Que se possa levar isso adiante”, afirmou Paulo Barausse, padre jesuíta e membro do coletivo que participou das escutas junto à comunidade, na época do massacre.

Depois de três anos, o caso encontra-se na 2ª vara criminal da Justiça Federal à espera de denúncia. Na Procuradoria do 9ª ofício, responsável pela parte Criminal, Controle Externo da Atividade Policial, além de Custos Legis Tributário e Custos Legis Previdenciário, o caso está sem procurador responsável. Ainda não há denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF).

A falta de identificação e responsabilização dos envolvidos nos crimes tem sido um fator de influência na saúde coletiva vivenciada pelas comunidades.

O secretário nacional do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), Dione Torquato, membro do coletivo, lembrou que conflitos já aconteciam na região desde 2014 e que a situação era de conhecimento do Governo do Estado. Já havia, inclusive, denúncia no âmbito do MPF.

 

Relatos de dor e coragem marcam mobilização por Justiça

“O Governo do Amazonas autorizou esse massacre; o próprio governador, e hoje temos sofrido as consequências da irresponsabilidade dele. Quantas autoridades, juízes e delegados já passaram por esse caso? Quem teve a coragem e competência para dizer que o Governo é culpado? Nós sabemos que ele é culpado”. Um misto de dor, indignação e esperança marcou o segundo dia do ciclo de debates sobre Massacre do Rio Abacaxis, que trouxe representantes das comunidades ribeirinhas e indígenas dos rios Mari-Mari e Abacaxis, de Nova Olinda do Norte, para relatar as violações que vêm sofrendo desde a chacina, ocorrida entre os dias 03 e 09 de agosto de 2020.

Mesmo sob ameaças e correndo risco de morte, as vítimas cobram justiça em relação aos envolvidos. No dia em que se completa três anos do massacre, tristeza, desabafo, choro e também coragem estiveram presentes nos relatos de quem vivencia as consequências de crimes como abuso de autoridade, coação, agressões verbais e física, tortura e descaso.

A perda da liberdade de circulação na região, além da invasão maciça de todo o tipo de exploração ilegal como madeireiros, garimpeiros, caçadores, pescadores e grileiros de terras, que foi intensificada após o massacre, foi unânime nas falas das sete pessoas que compuseram a mesa.

As vítimas relataram assistirem, desde 2021, a crescente invasão do território com embarcações carregando todo o tipo de riqueza da floresta, incluindo caça e pesca. “O rio ficou pior do que já era, ficou sendo saqueado sem que ninguém pudesse falar nada”, explicou a liderança. Eles cobram a construção de uma base de segurança da Polícia Federal no local, que chegou a ser prometida à época.

“Não estamos aqui para pedir indenização. Só queremos Justiça. Queremos que as pessoas que torturaram, que mataram, que estavam nesse movimento, sejam punidas. Perdemos nossas vidas, paz, liberdade e autonomia. Não matamos ninguém. Não roubamos ninguém. Não fizemos nada disso, mas estamos pagando”, afirmou uma liderança indígena do povo Maraguá.

“Nossos parentes pagaram por uma coisa que não tinham nada a ver. Foram mortos como se fossem um animal. Amanheceu o dia, e encontramos só o corpo, a cabeça estava toda estraçalhada. Na nossa área, do rio Mari-Mari tem uma placa, da demarcação, conseguimos com muita luta, há 20 anos. Agora estamos pedindo por socorro enquanto somos massacrados”, afirmou outra liderança indígena, do povo Munduruku.

“A lancha entrou no rio errado, eles alegam. Mas eles não estavam com um mapa ou um GPS? Do lado do governo parece que está tudo tranquilo. Às vezes dá vontade de desistir, mas peço ajuda de Deus e força pra lutar: se for para morrer, que eu morra vendo a justiça ser feita”, completou o indígena Munduruku.

Em meio a lágrimas e soluços, uma representante das vítimas silenciou o auditório, diante dos questionamentos: “Será que essas pessoas são dignas de usar essa farda? Será que elas têm esse direito? Esperávamos a chegada do nosso parente em casa e até hoje ele não apareceu. O que fizeram? Onde ele está? Também é um ser humano. Peço por Justiça, peço a Deus que me mostre onde ele está, o que aconteceu. Deus deu a vida e a liberdade a todos. Temos um advogado muito grande acima de nós, Deus. Uma hora vai sair a resposta”, relatou, emocionada. “Para nós, não é dinheiro não. Queria vê-lo de novo. É muito revoltante, triste o que aconteceu”, completou.

O evento organizado pelo laboratório Dabukuri – Planejamento e Gestão do Território na Amazônia – espaço vinculado ao Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), iniciou nesta quarta-feira (2), no auditório Rio Solimões, do Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais (IFCHS).

Ao final, um jovem Maraguá, filho de liderança, pediu por oportunidades para os jovens da região que acabam sendo aliciados pelo tráfico de drogas e demais atividades criminosas. “Agora que a região passou a ser uma ‘novidade’, que ‘descobriram’ que existem pessoas, indígenas, venho pedir como um jovem: a gente quer é oportunidade. Como morador de lá, já passei por perdas para traficantes. O que tiverem de encontros, de oportunidades de aprendizados, nós queremos. Sinto esse prazer de lutar pelo meu povo, quero aproveitar para ter mais conhecimento”, afirmou.

As vítimas denunciaram ainda o clima de tensão e preconceito vivenciado na cidade por parte do poder público municipal que acaba contaminando a população local. Em Nova Olinda do Norte foi retirada a disciplina de língua indígena nas escolas.

O procurador da República no Amazonas, Fernando Merloto, responsável pelo 5º ofício do MPF, relacionado a populações indígenas e comunidades tradicionais, afirmou que os conflitos na região acontecem já há alguns anos e houve uma tentativa de mediar um ordenamento fundiário e pesqueiro na região, pelo MPF. “Temos aqui um procurador responsável agora para apurar os reflexos civis do massacre, paralelo ao acompanhamento criminal”, explicou.

O evento contou ainda com a participação da perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) Ana Valeska Duarte.

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