COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Ação ilegal da Polícia Militar, com veículos e helicóptero, é a segunda contra territórios indígenas no Mato Grosso do Sul em duas semanas

POR CIMI REGIONAL MATO GROSSO DO SUL
Foto: Comunidade Kurupi

Como se não bastassem a fome e a falta total de condições básicas de vida, herança de décadas de espera pela finalização do processo demarcatório, o tekoha Kurupi, acampamento Guarani e Kaiowá localizado nas margens da BR-163, próximo à cidade de Naviraí (MS), vem sofrendo sistematicamente ataques, investidas, cercos e ameaças tanto de fazendeiros como das forças de segurança do Estado.

Na tarde desta quinta-feira (16), os indígenas foram surpreendidos por um trator e veículos que, advindos da fazenda Tejuy, dirigiram-se até o limite do acampamento Kurupi. A frota tinha o intuito de avançar com o desmatamento que fazendeiros promovem em uma área que, segundo os indígenas, é de preservação permanente, e de onde a comunidade extrai remédios e materiais.

Segundo os Kaiowá, um grupo de indígenas se deslocou até o local para averiguar a situação, momento em que foram novamente surpreendidos, desta vez pela presença de veículos da Polícia Militar (PM) que se encontravam junto aos civis, garantindo-lhes escolta – o caso, aliás, é parecido com o que narram as comunidades Kaiowá da Reserva de Dourados, onde as denúncias apontam que grupos policiais dão guarida e escoltam proprietários e sitiantes que despejam veneno e avançam com plantações até o limite das casas dos indígenas.

Com a aproximação dos Kaiowá, os brancos recuaram, seguidos pela própria polícia, em direção à sede da fazenda. Os indígenas então se aproximaram da sede buscando, segundo liderança que será identificada como ‘Guyra Verá Saiju, “conversar com os policiais para impedir que machucassem a mata da comunidade”.

A partir deste momento, cenas repetidas e muito conhecidas pelos Kaiowá tomaram forma. Disparos de arma de fogo e avanço da polícia sobre os indígenas, que recuaram novamente para o acampamento. Os tiros e o início das investidas puderam ser testemunhadas por uma equipe da vigilância sanitária que realizava a entrega de hipoclorito de sódio para a comunidade.

Após estes primeiros movimentos, enquanto a noite começava a tingir o céu, cenas de guerra tomavam conta do horizonte. Um helicóptero passou a sobrevoar a área indígena, amedrontando as crianças e obrigando as lideranças a se esconderem nos esparsos locais de mata para garantir proteção. Disparos seguiam sendo ouvidos.

Enquanto isso, os veículos policiais deixaram a fazenda, acessaram a BR-163 e em poucos minutos já estavam cercando a frente da comunidade. Foi então que alguns policiais teriam, segundo a comunidade, inquirido alguns indígenas, procurando nominalmente pelas lideranças e ameaçando-as de prisão.

Até este momento, é impossível prever o desfecho desta história e as famílias de Kurupi, com base no que lhes é corriqueiro, temem novos ataques.

Em um cenário caótico, novamente os policiais agem ao arrepio da lei, sem nenhum mandado ou ordenamento jurídico, contra famílias indefesas e em situação de hipervulnerabilidade social.

Cenário se repete

Treze dias antes dos ataques da tarde e noite desta quinta-feira (16) contra Kurupi, a Polícia Militar tentou despejar ilegalmente, pela segunda vez dentro do período de um ano, famílias Kaiowá do território de Laranjeira Nhanderu, no município de Rio Brilhante (MS).

Durante o ataque ao tekoha, a polícia utilizou várias outras ilegalidades e arbitrariedades, como impedir a presença da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) na área indígena e prender, sob argumentos fraudulentos, três indígenas da comunidade, que foram soltos sem maiores questões no dia posterior.

Intimidações e monitoramento informal

Após a tentativa de despejo ilegal de Laranjeira Nhanderu, policiais militares e civis passaram a desempenhar uma série de intimidações e ações de monitoramento informal. Primeiro buscando, à paisana, interpelar motoristas de ônibus que haviam prestado serviço para a Aty Guasu – Grande Assembleia do povo Guarani e Kaiowá – quando estes haviam justamente viajado para apurar e denunciar as violações sofridas pela comunidade de Laranjeira.

Os motoristas foram submetidos a “inquéritos informais”, nos quais policiais buscavam uma série de informações delicadas. Além disso, lideranças Guarani e Kaiowá passaram a receber ligações de supostos policiais federais, que mencionavam a necessidade de comparecimento à delegacia para prestar explicações e depoimentos, sendo que estas oitivas não possuem nenhum registro formal.

Estes fatos levaram a Aty Guasu a escrever uma carta de denúncia através da qual pedem ajuda de entidades e instâncias que possam irromper este cerco e garantir a segurança física e a não criminalização de suas lideranças.

Segundo ataque a Kurupi em oito meses

No dia 29 de junho do ano passado, forças públicas de segurança já haviam atacado ilegalmente por cerca de três dias o acampamento de Kurupi. Estes ataques ocorreram concomitantes ao evento que ficou conhecido como masssacre de Guapoy.

Realizado por um robusto contingente da PM, com apoio de helicóptero, contra famílias Kaiowá desarmadas – sobretudo crianças – o ataque ao tekoha Guapoy, em Amambai (MS), resultou no assassinato do indígena Vitor Fernandes e deixou dezenas feridos.

No ano passado, após as investidas contra Kurupi, agentes policiais chegaram a publicar vídeos em redes sociais vangloriando-se de terem tomado partido em defesa dos proprietários.

Ações policiais ilegais em defesa do agronegócio

Talvez o assassinato de Oziel Terena, em despejo realizado contra a Terra Indígena (TI)  Buriti em 2013, seja um dos primeiros registros contemporâneos do uso de forças de segurança, de forma ilegal, atacando comunidades em defesa explícita da propriedade privada no Mato Grosso do Sul.

O que assusta, no entanto, é o crescimento vertiginoso e a naturalização que esta prática ganhou no estado no período recente. Em cinco anos, já foram pelo menos dez ações do tipo.

Em 2018, a polícia já agia à revelia da lei em uma série de investidas desastrosas contra o povo Kaiowá. Em 2019, o então prefeito de Aquidauana utilizou ônibus escolares e estrutura pública para instrumentalizar a PM numa ação violenta e sem base legal contra famílias do povo Kinikinau.

Já em 2022, Laranjeira Nhanderu sofreu o primeiro dos golpes ilegais. De lá para cá, a situação escalou, tendo seu pior momento nas cenas de terror que marcaram o Massacre de Guapoy.

Em um breve esboço, podemos listar as seguintes ações ilegais da PM contra comunidades indígenas no mato Grosso do Sul:

2018 – Ação de revista policial, sem ordem judicial, contra casas e famílias Kaiowá da comunidade Nhandeva em Caarapó seguido de prisão arbitrária de liderança.

2018 – Ação ilegal da PM, com helicóptero, que resultou em conflito e prisão do indígena Ambrósio, senhor portador de necessidades especiais no território de Guapoy, em Caarapó

2019 – Ação ilegal da PM, sem nenhuma ordem de reintegração de posse, na qual o então prefeito de Aquidauana utilizou estrutura pública – inclusive ônibus escolares – para despejar famílias do povo Kinikinau

2022 – Ação de despejo ilegal protagonizado pela PM conta famílias de Laranjeira Nhanderu, em fevereiro, no município de Rio Brilhante

2018 a 2022 – Série de ações contra os indígenas da Reserva de Dourados, que foram de ataques até escolta da polícia para que sitiantes utilizassem veneno em monoculturas lindeiras aos barracos dos acampamentos indígenas Kaiowá junto à Reserva de Dourados

2022 – Ataque policial com intuito de despejo ilegal contra a comunidade de Guapoy, Amambai

2022 – Massacre protagonizado pela PM, no caso que ficou conhecido como Massacre de Guapoy, em Amambai

2022 – Primeiros ataques ilegais de forças de segurança contra o acampamento Kaiowá de Kurupi em Naviraí

2023 – Segundo despejo ilegal contra famílias de Laranjeira Nhanderu em Rio Brilhante

2023 – Último ataque a Kuripi

 

“É preciso julgar logo, e com a graça de Nhanderu enterrar esse marco temporal. Só depois disso tudo poderemos ter paz”

 

Guarani Kaiowá clamam por demarcação e imploram: “STF, julgue logo o marco temporal”

Acompanhando a situação de Kurupi e todas as últimas violações sofridas pelos Guarani e Kaiowá, a Aty Guasu fortalece seus apelos pelo avanço das demarcações e, de maneira ainda mais contundente, reforça a necessidade premente do Supremo Tribunal Federal (STF) julgar logo o Recurso Extraordinário com Repercussão Geral 1017365.

“É preciso que o STF tenha coragem de honrar o que garantiu para os povos do Brasil. Enquanto não for julgado o recurso extraordinário, o resultado será este. Todo dia um novo ataque, e nós os Kaiowá sem saber se nosso povo e nossos territórios resistirão”, afirma a liderança Kunha Poty Rendy.

“É preciso julgar logo, e com a graça de Nhanderu enterrar esse marco temporal. O marco temporal é a base para o governo do Mato Grosso do Sul e de todos os estados continuarem atacando nosso povo como se não tivéssemos direitos, como se eles pudessem vir aqui e nos arrancar à força, na bala”, prossegue a liderança.

“Com o marco temporal enterrado precisamos que o governo Lula, nosso Ministério dos Povos avancem as demarcações. Só depois disso tudo poderemos ter paz, não precisaremos estar passando pela angústia de não saber se as lideranças de Kurupi ainda estão respirando, se ainda estão vivos”, angustia-se Kunha Poty Rendy.

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