COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

A equipe da CPT em Marajó, Pará, divulga Nota Pública contra o Projeto de Lei 107/2017, do deputado estadual Hildegardo Nunes, apresentado à ALEPA, que reconhece a pecuária como atividade tradicional do Marajó, considerando-a prioritária nos investimentos públicos, e as demais atividades tradicionais, como pesca e extrativismo passam a ser “complementares” e a receber “permissão” para continuarem sendo praticadas. Leia o documento na íntegra:

(Imagem: Greenpeace)

A CPT-Prelazia do Marajó saúda respeitosamente o povo marajoara - em especial as comunidades ribeiras esparramadas pelo interior deste belo e imenso território - assim como as mulheres e os homens de boa-vontade que lutam pela preservação deste patrimônio natural de valor incalculável: Terra-Mãe, que vem há milhares de anos alimentando e alegrando a vida de milhares de famílias marajoaras com sua fartura gratuita. 

É com surpresa e profundo descontentamento que a CPT-Prelazia do Marajó tomou conhecimento do Projeto de Lei 107 de 31/05/2017, apresentado pelo deputado Hildegardo Nunes à Comissão de Cultura da Assembleia Legislativa do Pará (ALEPA) no dia 05/06/2017. O PL dispõe sobre o reconhecimento da pecuária como atividade tradicional no Marajó, considerando-a prioridade na ordem dos investimentos agropecuários para a região. Atividades como o extrativismo e a pesca, por exemplo, são definidas no documento como "complementares" e recebem "permissão" para continuarem sendo praticadas. O PL conclui instituindo uma certificação aos produtos e subprodutos oriundos do Marajó. 

Formada - segundo estudos de pesquisadores renomados - desde os anos 600 d.C a partir dos primeiros povos indígenas nheengaíbas (mamayanases, aruans, mapuaz, paucacaz, guajaraz, arapixis e tucojus), a sociedade marajoara hoje abriga 541 mil pessoas moradoras de 16 municípios em uma área que cobre 10,4 milhões de hectares. Tal população habita em três microrregiões: campos, furos e ilhas e florestas de terra-firme, numa intrincada malha de rios e igarapés que dão condições às diversas paisagens naturais e modos de vida existentes.   

Por sua localização geográfica, é considerada uma das áreas mais importantes do planeta, pois recebe a foz do maior dos rios - o rio Amazonas - que, juntamente com a área costeira do Amapá, desde ilhas do município de Almeirim-Pa, cercanias de Belém e Baixo rio Tocantins, caracterizam o chamado estuário amazônico. O Marajó é consagrado pela Constituição do Estado do Pará como uma Área de Proteção Ambiental – APA - em seu artigo 13°, parágrafo 2°, cuja regulamentação encontra-se em curso a partir da criação de seu Conselho Gestor. Este Conselho, não obstante possuir o caráter consultivo, tem a obrigação de atuar como observatório da utilização dos recursos naturais na região, em um adensamento florestal que, de acordo com o INPE, felizmente cobre 96% do território: matas que sobreviveram à Era da Indústria Predatória da Madeira e do Palmito, entre 1950 e 2006. O Marajó é ainda reconhecido pelo Governo Federal como um Território da Cidadania, tal a necessidade de reconhecer suas particularidades.  

Pelo número de habitantes e complexidades inerentes a este território, questionamos o fato de pessoas que se dizem representantes do povo proporem leis como a PL 107, que incidem diretamente sobre a vida de milhares de marajoaras, sem que as mesmas tomem conhecimento, ou sejam convocadas para participar deste processo. Não há clareza sobre o que fundamenta a diferenciação entre atividades prioritárias e complementares proposta pelo PL. Ao contrário, a história do povo marajoara aponta para a importância maior de atividades como extrativismo e pesca - potencializadas pela multiplicação dos manejos comunitários e planos de uso -, ainda que se considere a existência da criação de animais, especialmente na região de campos. 

Para se ter uma ideia, só a comercialização de açaí é capaz de movimentar mais de 300 milhões de reais por ano entre os 16 municípios do Marajó – de acordo com as avaliações do IDESP, valioso órgão estadual que fazia pesquisas socioeconômicas e que foi extinto pelo atual Governo Paraense em 2015 – cujos valores em frutos beneficiados de açaí podem duplicar ao longo de sua cadeia de valor, envolvendo os mercados estadual e nacional. A farinha de mandioca, outro produto tradicional das famílias marajoaras que remonta aos tempos dos povos nativos, além de alimentar, é também parte importante da socioeconomia local, com mais de 55 mil toneladas de farinha produzidas pelos agricultores e agricultoras familiares do Marajó, segundo dados do IBGE de 2015. E o que dizer do potencial socioeconômico e ambiental da pesca do camarão amazônico em Melgaço/Bagre/Curralinho (Triângulo do Camarão), São Sebastião da Boa Vista e Afuá? A caça e a pesca tem papel importantíssimo na alimentação do povo no meio rural, e são recursos fundamentais de sobrevivência, retirados da floresta tanto de terra firme como de várzea, de acordo com seu agroecossistema. A relação entre a natureza e os costumes ribeirinhos é muito forte, pois suas atividades são realizadas de acordo com as marés que, por sua vez, estão ligadas diretamente com as fases da lua. Apesar de não termos uma estatística consolidada sobre a comercialização daquilo que se pesca, esta é uma atividade extrativista que, junto com a farinha e o açaí, é ao mesmo tempo comida, finanças e tradição do povo marajoara, aquilo que nos liga à Mãe Terra. Somada ao uso centenário das sementes da floresta para se obter óleos medicinais, aos cipós e enviras, tem-se a amarração de um lugar que ainda conversa com a natureza. 

Considerando esta realidade, soa no mínimo descabido o referido no artigo 2º do PL - sobre as atividades consideradas pelos deputados como "complementares" receberem "permissão" para serem praticadas. Não faz o menor sentido conceder "permissão" para que atividades tradicionalmente praticadas continuem ocorrendo. Elas já fazem parte da história, da cultura e do estilo de vida próprios do povo ribeirinho. 

É preciso ainda evidenciar o perigo implícito na obscura definição do que é prioridade daquilo que não é: se a pecuária ganha status de prioridade, pode facilmente desalojar comunidades de suas ocupações tradicionais, uma vez que se sobrepõe às mesmas e às atividades “secundárias” que estejam desenvolvendo. Inverte-se a lógica do Bem-Viver e se estabelece uma lógica absurda onde gado tem mais importância do que a vida humana e a preservação da natureza. Em outras palavras: além do possível (e provável) crescimento de conflitos por causa da terra, estaremos diante do possível (e provável) crescimento dos níveis de desmatamento, sob pretexto de que matas e florestas sejam menos prioritárias do que a pecuária e o lucrativo mercado que ela alimenta. Sim, atualmente a pecuária tem o financiamento com a menor taxa de juros do mercado (3,5% a 4% para 2017-2018). Não é de se espantar que haja tanto interesse em sua expansão. 

Há muitos dados interessantes a respeito da pecuária - dados que revelam o quanto ela é uma atividade de viabilidade duvidosa, que jamais poderia ser eleita como "carro-chefe" de qualquer proposta de "crescimento econômico" que se preze sustentável.

A cada minuto no país uma área de floresta equivalente a dois campos de futebol é desmatado - o que parece indicar que a Amazônia está sendo transformada num enorme pasto... Além disso, nossos governantes têm se mostrado muito interessados em votar - e com urgência - projetos que ampliam a exploração comercial em áreas anteriormente protegidas - e que vem sendo sistematicamente invadidas por criadores de gado. Colocar gado em terra invadida é uma estratégia muito utilizada para "regularizar" situações criminosas. Sob a justificativa de que se está criando e produzindo carne, pecuaristas encontram caminho aberto para legalizar a grilagem de terras públicas. Mais preocupante ainda é constatar que muitos dos que fazem isso não moram nas terras que invadem e nem dependem delas para sobreviver. Ao contrário, como comprovou o IBAMA (por meio da Operação Carne Fria, deflagrada em março deste ano) há pecuaristas e donos de frigoríficos produzindo carne em terras que não lhes pertencem. 

Do ponto de vista ambiental, a criação de gado é um grande problema: atividade pecuária + desmatamento para pastagens na Amazônia respondem por 55, 6% das emissões de efeito estufa no país. E pesquisadores alertam que o metano, eliminado pelas vacas, é vinte vezes mais venenoso que o dióxido de carbono. Além da destruição de nossa biodiversidade e da poluição do ar, a pecuária é a atividade que mais consome água no país e no mundo. Para cada quilo de carne bovina, por exemplo, gastam-se 16 mil litros de água. Esse uso estende-se à irrigação dos pastos e das monoculturas de grãos (soja), que integram a ração destes animais. Será que, pelo fato de ser considerada atividade prioritária para investimentos, a pecuária terá acesso garantido à água - que milhares de marajoaras ainda não recebem em suas casas, após tantos anos de lutas e esperas? Terá o gado mais direito à água do que as pessoas? 

A grilagem de terras e a devastação da natureza também deixam marcas de sangue por onde passam: o Brasil é o país que mais mata ambientalistas no mundo e, em 2016, registrou 61 assassinatos oriundos de conflitos agrários. Números dramáticos que poderiam ser evitados se houvesse uma séria política de regularização fundiária no país, notadamente na Amazônia. 

O Marajó hoje possui 37% de sua área total destinada em termos de regularização fundiária, sobretudo ordenada em sua parte ocidental, em furos e ilhas. Na região dos campos e áreas de terra-firme, o caos fundiário prevalece. E isto se deve à ausência de uma política agrária séria, que priorize a regularização fundiária nesta região. O povo empobrecido, mal informado, explorado no trabalho - e muitas vezes escravizado - é obrigado a assistir suas terras sendo saqueadas pela ganância desmedida de pessoas e grupos poderosos que atuam impunemente grilando terras, explorando ilegalmente madeira e palmito, ameaçando lideranças comunitárias e expulsando famílias que ocupam terras há várias gerações. Documentos relacionados à terra, mas que não comprovam propriedade da terra, vem sendo utilizados para forçar a saída de pessoas que tem o direito legítimo de permanecerem nas terras, pois moram nelas e cumprem a função social de produzir e proteger os bens naturais ali existentes. Estamos falando de gente que depende da terra para sobreviver. O mau uso do CAR (Cadastro Ambiental Rural) é um exemplo típico do que acabamos de falar. O processo que envolve o documento possui vícios que comprometem sua finalidade: o CAR é autodeclaratório e beneficiado pela falta de fiscalização dos dados declarados. Por isso, é possível constatar uma grande quantidade de CARs que se sobrepõem a áreas já destinadas ou tradicionalmente ocupadas por famílias que vivem do uso sustentável de terras públicas. Enquanto em termos fundiários se ordenou 37% das áreas do Marajó, 63% do território marajoara está coberto por CARs, o que coloca sempre a dúvida sobre quem efetivamente mora e produz e quem especula e grila. Para agravar a situação, no sistema do CAR da Secretaria Estadual de Meio Ambiente, muitos campos marajoaras são considerados “áreas consolidadas” por seus declarantes, ou seja, não seriam mais campos naturais, mas sim objetos de uso da pecuária e da agricultura de grande escala.  

Enfim, o ponto crucial de toda a problemática levantada pelo PL é a questão agrária. Ao ser apresentado à Comissão de Cultura da ALEPA, o PL desvia o foco de sua verdadeira atuação: definir a pecuária como atividade tradicional e prioritária para investimentos tem menos a ver com cultura do que com concretizar a entrada do agronegócio na região - "negócio" este que põe em risco a natureza, a soberania alimentar e os direitos das comunidades às terras.

A propósito, vale mencionar aqui que este PL foi precedido de outro que lhe beneficia - deixando evidente que há um caminho sendo construído para a instalação de atividades inseridas na lógica do agronegócio. No dia 10/05/2017 os deputados aprovaram por unanimidade o Projeto de Lei de Incentivo ao Agronegócio, de autoria do deputado Fernando Coimbra. 

Diante dos fatos e argumentos aqui expostos, a CPT-Marajó se posiciona contra qualquer proposta que prioriza o avanço de atividades econômicas sobre terras marajoaras, mas ignora a grave pendência da regularização fundiária na região, deixando as populações ribeiras à mercê de critérios e prioridades que não foram construídos com sua participação ou consentimento - isso inclui a imposição de uma certificação aos produtos e subprodutos marajoaras, citada no artigo 3º. 

Vivemos tempos de grave crise política nas diversas esferas do governo, e presenciamos a cooptação crescente do poder político pelo poder financeiro, concentrado nas mãos de empresários-ruralistas. É imperativo que comunidades e povos tradicionais se unam e se esclareçam cada vez mais sobre projetos que ameaçam seu estilo de vida e os bens da natureza. A CPT-Marajó se coloca como apoio e companheira de luta na defesa da Mãe-Terra e dos povos que cultivam o Bem-Viver como modo de vida, permanecendo à disposição para refletir e aprofundar esta questão junto à população e aos movimentos e entidades que compartilhem desta luta. 

CPT - Prelazia do Marajó

Breves, 27 de junho de 2017.

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