COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Olavo Nienow foi coordenador da CPT por uma década no período de redemocratização do país, após ficar preso durante alguns dias por causa do seu envolvimento nas lutas. Confira a entrevista:

 

(Por Eduardo Sá, da Articulação Nacional de Agroecologia – ANA)

Rondônia é o Estado com maior número de mortes por causa do conflito fundiário. Essa é a constatação do último relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), apontando para a morte de 20 lideranças na região em 2015. Território de expansão da produção da soja, que tem cada vez menos onde plantar no Cerrado, e da agropecuária. É um dos estados com maior produtividade dos dois produtos.

Para entender melhor esse contexto, conversamos com Olavo Nienow, de 65 anos, veterano da militância local que atua na região desde a época do regime militar a partir das bases da igreja luterana.

Segundo ele, o principal problema é que a judicialização da questão fundiária demora na destinação das terras e até o resultado final a configuração dos problemas já mudou. É uma bola de neve, cujas soluções atuais só têm acirrado a violência e a disputa pelas terras que foram ocupadas irregularmente no decorrer do tempo.

O sociólogo foi coordenador da CPT por uma década no período de redemocratização do país, após ficar preso durante alguns dias por causa do seu envolvimento nas lutas.

Foi consultor no Instituto Interamericano de Cooperação para Agricultura (IICA) prestando assessoria e capacitação técnica aos assentamentos do Incra. Assumiu a superintendência deste órgão durante cinco anos no governo Lula, foi delegado do Ministério de Desenvolvimento Agrário em Rondônia e hoje exerce sua aposentadoria assessorando o deputado estadual Lazinho da Fetagro (PT).

Você veio do sul pelo Mato Grosso indo parar no olho do furacão em Rondônia, na década de 70. Como estava esta construção da luta pela terra dos movimentos locais à época?

O processo de migração foi cada vez mais intensivo e não tinha as organizações sociais. As igrejas incentivaram, principalmente a católica e a luterana, que trabalharam de forma ecumênica nas CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). Por causa do regime militar, era muito difícil o processo de organização devido à perseguição. Então a igreja era um espaço mais reservado para a reflexão e promoção desse encontro entre os trabalhadores.

Criaram praticamente todos os sindicatos dos trabalhadores rurais, e também havia em cada município uma Associação de ajuda mútua. Eram voltadas para a organização do processo produtivo e comercialização, como tudo era longe ficava caro e havia muita exploração dos atravessadores. Passaram a fazer compras e vendas coletivas com melhores preços, inclusive foi criada uma central de associações e uma cooperativa que ainda existem.

As ocupações e conflitos de terras foram se acirrando, porque o Incra não dava conta de fazer o ordenamento fundiário com tanta celeridade. Embora tenha sido o Incra mais estruturado do país à época, o incentivo da migração era muito forte.

Os agricultores não tinham alternativa à buscar um pedaço de terra para trabalhar, e com isso houve um processo acelerado de ocupações de áreas tanto públicas como privadas. Os agentes pastorais também passaram a ser perseguidos e ameaçados, alguns foram até mortos, como o caso do Padre Ezequiel Amin. Assim surgiu a organização dos trabalhadores: a Comissão Pastoral da Terra (CPT) foi criada regionalmente em 1983 exercendo um papel muito importante nisso. E também surgiu em nível nacional o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), aqui acho que em 1985 e logo teve uma delegação no Congresso Nacional em Curitiba.

Até que ponto o passado de luta está presente, na medida em que o último relatório da CPT denuncia em Rondônia um dos maiores índices de morte em conflitos rurais do país?

Rondônia antes de ser Estado foi território federal criado por desmembramento: parte do Mato Grosso e do Amazonas. A ingerência do Governo Federal foi muito forte, e no regime militar eles encontraram aqui uma válvula de escape para diminuir os conflitos pela terra na região sul e leste com o avanço da monocultura empresarial, como a soja, que foi expulsando os agricultores para cá. Isso fez com que o Incra não concluísse o processo de regularização fundiária, porque arrecadou todas as terras devolutas em nome da União mas o estado de Rondônia não.

O governo federal tinha de dar sua destinação social, então o Incra implantou projetos integrados de colonização e de licitação dirigidos para determinadas culturas: seringa, cacau e agropecuária na região sul, com lotes que variavam de 500 a 2 mil hectares dependendo da região e do processo.

Porém em 1985 no final do regime militar, quando chega a nova república com Sarney, foi pensado o I Plano Nacional de Reforma Agrária. Com isso, o foco se voltou mais para as desapropriações ou aquisições e menos para regularizações. O Incra passou por um processo de sucateamento, e se voltou mais para outros estados e grande parte da terra que arrecadou em Rondônia não foi destinada corretamente. Deu margem à grilagem dos grandes e dos pequenos, que ocupavam essas áreas.

Para complicar ainda mais, o Estado de Rondônia por volta de 1995 criou o PlanaFloro (Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia) com financiamento do Banco Mundial para fazer o zoneamento do Estado e depois consolidá-lo em um Projeto de Lei. Foi o primeiro estado a ter o zoneamento oficial e regulamentado em lei, isso ocorreu por causa do acelerado desmatamento com o ciclo madeireiro e a agropecuária. O zoneamento criava zonas de proteção especiais na floresta e para o desenvolvimento da agricultura ao longo da BR 364, onde estava a maioria dos projetos de assentamentos.

Mas o estado não conseguia executar, fiscalizar ou fazer um trabalho de conscientização nesse sentido, então esse zoneamento foi sendo ocupado e deturpado para outra finalidade. Os conflitos não acabaram, pelo contrário foram se acirrando. Sempre teve muita violência e mortes, como o massacre de Corumbiara e outros, porém nos últimos anos esses conflitos voltam com bastante força porque as possibilidades de ocupação de áreas não destinadas exauriram: a disputa é pelos espaços que já estão ocupados.

E o governo federal, através do Incra, principalmente pelo Terra Legal, não tem condições de resolver essas questões. Na década de 70 ele fazia o papel do estado e mandava prender, hoje ele não tem como remover essas pessoas dessas terras: tudo é judicializado, tem processos que o Estado ajuizou através da sua procuradoria em até 30 anos. Quando consegue uma decisão definitiva do judiciário, a situação já está totalmente desconfigurada e mais difícil de dar esse ordenamento jurídico.

Hoje numa área de mais de 100 mil hectares com mais de 4 mil famílias envolvendo três municípios, o judiciário deu ganho aos pretendentes que eram do antigo seringal e tinham um tipo de concessão para o uso. E agora como vai resolver? Conseguiu o domínio da terra, mas a posse já perdeu há muito tempo porque está totalmente ocupada por famílias que moram lá há 30 anos onde até o neto já nasceu numa situação totalmente consolidada com casas de alvenaria, currais, etc. Esse é só um exemplo. Enquanto o Estado não puder intervir com um forte apoio do judiciário, esses conflitos vão continuar e a tendência é acirrar cada vez mais.

Então o próprio Estado é um dos principais fomentadores do agronegócio nessa região, ao viabilizar esses latifúndios para a soja, por exemplo?

Um dos fatores que contribuiu muito para isso foi que o sul do Estado é área de transição do Cerrado com a Amazônia, e alguns empresários dessa região estimularam a Embrapa de Rondônia no desenvolvimento de pesquisas com soja.

O resultado é que temos um dos índices de maior produtividade de soja no país. Além disso, muitas vezes pragas em pastagens geram a substituição de áreas de pecuária para lavoura de soja. Depois foi avançando nas áreas de mata, onde o Incra tinha implantado uma série de colonização como em Colorado e Cerejeiras, que tinham lotes na década de 80 e assenta milhares de famílias.

Os empresários rurais adquiriram boa parte dessas parcelas dos colonos, ou os agricultores arrendaram e o pessoal foi mudando para as cidades. Vilhena inchou muito, assim como Colorado do Oeste, Cerejeiras, Corumbiara, etc, onde houve justamente o avanço da soja. De dois anos para cá e de forma cada vez mais intensiva, também vai se consolidando na região norte do estado, principalmente de Ariquemes ao Amazonas passando por Porto Velho em direção a Guajará-Mirim. Inclusive avançando para o sul do Amazonas, na região da BR 319.

Além da expansão agrícola e pecuária, há os grandes empreendimentos com hidroelétricas e outros projetos do PAC. Houve uma reconfiguração fundiária em função disso também?

Houve, mas em termos de número de famílias não é muito. Atingiu alguns projetos de assentamentos, inclusive há tendências de uma disputa porque eles dimensionaram mal e além dessas áreas onde foram reassentados ou indenizados indevidamente tem outras famílias.

São mais de 200 ainda brigando com o consórcio para serem indenizadas ou reassentadas, porque também foram afetadas e não estavam incluídas nesse processo de deslocamento ou indenização. E também porque Porto Velho, que é uma região de solo um pouco mais fraco no Estado, não foi objeto de muitos projetos de assentamento na época do Incra. Por isso, havia menos agricultura familiar para impactar na construção dessas usinas.

E como os índios se encaixam neste cenário todo?

Por causa dessa ganância, do avanço, da grilagem e ocupação, a população indígena é a mais vulnerável. Conseguiram garantir uma demarcação não desejada, mas tiveram o reconhecimento de vários territórios. Mesmo grande parte deles sendo demarcados, não estão sendo respeitados por causa dessa ganância dos empresários e outros interessados. Praticamente todas as áreas indígenas têm ocupações ou a exploração permanente dos seus recursos naturais, principalmente da madeira e minerais.

O famoso caso Roosevelt com a exploração de diamantes dentro de uma área indígena dos Cinta Larga, por exemplo. Outra muito cobiçada na área central do Estado é dos Uru Eu Wau Wau, que tem mais de 2 milhões de hectares e é constantemente ameaçada de ocupações. A população extrativista, como os seringueiros, que hoje trabalham muito com castanhas, populações tradicionais que viviam dos recursos naturais da floresta e em reservas criadas e destinadas a elas, hoje sofrem de forma semelhante: vivem ameaçados de vida.

Esses povos têm algum diálogo com a mídia tradicional no Estado, ou ela é dominada por caciques locais? Como é a visibilidade dessas populações?

Os meios de comunicação de um modo geral no país tendem a incentivar o que é chamado de progresso e desenvolvimento, numa visão muito capitalista com a exploração rápida dos recursos naturais e a implantação de monoculturas. Por isso, a imprensa geralmente dominada por pessoas que têm essa mentalidade ou que também são desse meio empresarial, não tem canais para manifestar as contradições e a luta dessas populações mais vulneráveis.

Haverá uma reunião para unificar os movimentos, quais os desafios nessa conjuntura?

No final da década de 80 e na de 90 com a implantação do projeto PlanaFloro, esses movimentos todos, sindicatos, organizações indígenas e de seringueiros, criaram o Fórum das organizações sociais e ONGs. Um espaço bastante expressivo para fazer essa discussão do desenvolvimento do estado com a participação deles, mas depois foi enfraquecido e os movimentos se isolaram na sua luta de forma mais individualizada. Hoje estão percebendo que se continuarem assim dificilmente vão conseguir fazer frente a esse acirramento de confronto e ao avanço do capital sobre suas populações.

Começaram a se reunir para tentar tirar uma pauta comum e retomar a luta, ter um diálogo melhor com o Estado para poder discutir seus interesses. Para que o Estado não seja única e exclusivamente tomado pelo capital.

E como a agroecologia tem ajudado nessa construção?

Tudo começou quando incluímos engenheiros agrônomos na equipe da CPT para prestar assessoria aos agricultores para buscarem alternativas, porque muitos desistiam de trabalhar nas parcelas que o Incra tinha destinado por falta de opções econômicas.

Queríamos inovar no planejamento do desenvolvimento rural nos municípios e a capacitação dos técnicos que trabalhavam nos projetos de assentamentos. Não havia receptividade ao tema, então promovemos discussões sobre a agroecologia: em Porto Velho voltado para a direção da Emater e a secretaria de agricultura, e depois no interior do estado na Emater chamando vários técnicos e lideranças da igreja, agrônomos, ONGs e agricultores.

Os mais de cem presentes, principalmente os agricultores, quiseram se aprofundar nessa questão. Então houve um curso de capacitação em módulos, que disseminou a agroecologia entre os movimentos, e surgiu como desdobramento a Rede Terra Sem Males com os técnicos que eram vinculados a CPT e hoje estão no projeto Padre Ezequiel. Fizemos um plano de desenvolvimento da agroecologia no Estado, mas faltou motivação para dar continuidade.

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