COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Confira artigo de Thalles Gomes, da Brigada Dessalines da Via Campesina, sobre o terremoto no Haiti, que completou um ano no último 12 de janeiro.

Thalles Gomes*

E eis que chega o 12 de janeiro e nos lembramos de sentir pena do Haiti mais uma vez. Arrotando os últimos resquícios de espírito natalino junto com as sidras do réveillon, começamos o novo ano com o coração cheio de resoluções e bons sentimentos. E nada melhor que o aniversário de um ano do terremoto que matou mais de 300 mil pessoas para por em prática nossa nobreza.

 

Quem visita o país da piedade alheia não tarda a encontrar uma boa forma de se compadecer. Na verdade, e este é um dos charmes desta pequena ilha caribenha, o bom samaritano pode, inclusive, escolher qual calamidade vai ajudar a resolver. As opções são variadas.

 

Se optar por focar sua compaixão nas vítimas pós-terremoto, uma boa pedida é adotar algum dos um milhão de órfãos que vagueiam pelas ruas e acampamentos de Porto Príncipe desde janeiro passado. Quem optar por essa alternativa tem o benefício de garantir presença nas colunas sociais, sendo inevitável sua comparação a certas estrelas de Hollywood. O benfeitor deve tomar cuidado, no entanto, para evitar que em seu afã de praticar a compaixão cristã não se enquadre no crime de tráfico internacional de pessoas, como ocorreu com os dez missionários americanos da New Life Children's Refuge (Refúgio de Crianças Nova Vida), presos dias após o terremoto quando atravessavam a fronteira com a República Dominicana carregando 33 crianças sem autorização legal ou mesmo confirmação se eram realmente órfãs.

 

Ainda nos desastres pós-terremoto, um nicho com enorme potencial de atuação é o setor dos desabrigados. Apesar de certo êxodo urbano inicial, quando centenas de milhares partiram para o interior em busca de abrigo nas casas de familiares e amigos, inflando ainda mais o miserável meio rural que abarca 66% da população haitiana, o filão da moradia ainda está em voga no ramo da comiseração. Os que foram para o campo, não encontrando terra nem condições de sobrevivência, já retornaram para Porto Príncipe e se juntaram aos que permaneceram nos barracos e acampamentos improvisados. Mais de trezentas mil residências foram destruídas ou danificadas durante o terremoto, deixando cerca de 1,5 milhões de pessoas desabrigadas. Passado um ano, apenas 30 mil pessoas conseguiram ser transferidas para uma nova casa. Isso significa que o benfeitor não precisa se preocupar com materiais de construção e pode muito bem continuar a doar lonas e barracos, já que os acampamentos que deveriam ser temporários estão se transformando em moradia permanente. Além disso, lanternas, lamparinas e gases de pimenta são de muita utilidade para as mulheres. Sem energia e segurança nos acampamentos, são essas as únicas ferramentas capazes de dificultar a atuação dos estupradores. 250 mulheres foram agredidas sexualmente nos meses seguintes ao terremoto.  

 

Vendo o palácio presidencial ainda em ruínas, o filantrópico pode cogitar que apoiar a reconstrução da infraestrutura estatal seja um bom caminho para exercer seu compromisso humanitário. Afinal, os quarenta e dois segundos de tremor de terra destruíram quase 30 ministérios, 50 hospitais e centros de saúde e 1.300 escolas, o equivalente a 60% das infraestruturas do governo – que assim como o palácio presidencial, continuam em ruínas.

 

E esse não é o único problema enfrentado pelo Estado Haitiano. A perda financeira causada pelo terremoto é avaliada em US$ 7,8 bilhões ou 120% do PIB de 2009. O desemprego já chegou à casa dos 80%, mesma porcentagem da população que vive com menos de dois dólares por dia. A situação é complexa, mas a WFP (World Food Programme) parecer ter encontrado uma solução inovadora com o programa Food for Work, ou Trabalho por Comida. Retomando uma prática abandonada no século retrasado com a abolição da escravidão, este programa humanitário utiliza a comida como forma de pagamento pelo trabalho dos habitantes locais e, dessa forma, ataca dois problemas de uma só vez: a fome e o desemprego. 

 

As alternativas inovadoras não param por aí. O empresariado internacional, cumprindo sua função de responsabilidade social, propôs a criação de zonas francas nas fronteiras haitianas como forma de ajudar na reconstrução econômica do país. Serão 14 novas zonas que se juntarão às empresas ‘maquiladoras’ já existentes para produzir calças, sapatos e artigos de luxo para exportação, gerando assim milhares de subempregos, fortalecendo a superexploração do trabalho e incrementando o lucro dos empresários estrangeiros.

 

Para o benfeitor que busca fugir do caos que impera nos centros urbanos e depositar sua compaixão nos campos e montanhas do Haiti, a multinacional Monsanto e a ONG estadunidense USAID oferecem a oportunidade de doar sementes híbridas e agrotóxicos para as famílias camponesas haitianas. Já foram doadas 475 toneladas de sementes de milho híbrido em 2010 e o sucesso dessa iniciativa abre caminho para que as sementes transgênicas da Monsanto e de outras multinacionais do agronegócio finalmente aportem em território haitiano.

 

De fato, a presença estrangeira no Haiti vem se mostrando cada vez mais imprescindível para manter o país na situação em que se encontra. São 10 mil ONGs presentes na pequena ilha, dos mais diversos países e linhas de atuação, mas todas com um objetivo comum: incentivar ações localizadas e o empreendedorismo individual como única saída para solucionar os problemas estruturais. O fato de que, em pleno século 21, 39% dos haitianos ainda são analfabetos e apenas 19% têm acesso ao sistema de saneamento básico atestam a eficácia dessas iniciativas.

 

Outro exemplo de ação estrangeira bem sucedida é o da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti [Minustah], que nos últimos 12 meses conseguiu remover 5% dos escombros oriundos do terremoto e iniciar uma epidemia de cólera que já matou mais de 3.600 haitianos e infectou outros 170 mil.

 

Para tranquilizar de vez os caridosos que não confiam plenamente na capacidade da população haitiana em resolver seus próprios problemas, a comunidade internacional e as Nações Unidas apresentaram mais um reforço: Bill Clinton. O ex-presidente estadunidense foi escolhido para comandar o Comitê Provisório para Reconstrução do Haiti (CIRH), responsável por gerir os US$ 9,9 bilhões prometidos pela comunidade internacional para reconstruir o país nos próximos cinco anos. O fato de que menos da metade dos US$ 2,1 bilhões previstos para 2010 tenha efetivamente chegado ao Haiti não é motivo de preocupação. O país da piedade alheia está em boas mãos e a seguir nessa trilha continuaremos a praticar nossa compaixão por muitos anos.

* Integrante da Brigada Dessalines da Via Campesina. Texto publicado na página da revista Caros Amigos.

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