COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

O governo Michel Temer demonstrou que não tem pudores de declarar guerra, se isso puder resgatar sua popularidade do fundo do poço e trazer alguns votos para uma ainda duvidosa campanha presidencial. Mas não é contra qualquer um. Até porque o inimigo para muitos pode ser o aliado de alguns.

 

 (Por Leonardo Sakamoto – Blog do Sakamoto | Imagem: Elvis Marques/CPT Nacional)

Dada a quantidade de chacinas e massacres contra populações do campo, é surpreendente como ele deliberadamente se cala sobre a Amazônia e o Cerrado, enquanto grita a plenos pulmões que o fim do mundo está no Rio de Janeiro.

Não é de hoje que as regiões de expansão agropecuária e extrativista da Amazônia e do Cerrado vivem uma situação de conflito deflagrado. Ano após ano, os relatórios de violência no campo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e os casos divulgados pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entre outras organizações nacionais e internacionais, reforçados pelas declarações de relatores ligados ao Alto Comissariado para os Direitos Humanos das Nações Unidas e por números da Organização Internacional do Trabalho, mostram que o Estado brasileiro tem sido incompetente para prevenir e solucionar crimes contra a vida no campo. E que há uma situação clara de conflito deflagrado.

Isso quando não é, o próprio Estado, sócio de chacinas e massacres contra trabalhadores rurais, camponeses, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, caiçaras, entre outros.

Mortes no campo não são de hoje, mas há muitos produtores rurais e extrativistas gananciosos que estão com sangue nos olhos. Sentem-se fortalecidos por verem no atual governo federal um aliado para suas demandas. Tem sido um bom negócio para ambas as partes: eles garantem a manutenção de Temer (inclusive com a concessão de votos para livrar seu pescoço das denúncias de corrupção passiva, organização criminosa e obstrução de Justiça) e, em troca, ganham perdões bilionários e apoio para sua pauta de retorno ao feudalismo.

Querem mudar as regras da demarcação de territórios indígenas, suprimir ainda mais a proteção ambiental, ''flexibilizar'' as regras para a implantação de grandes empreendimentos, enfraquecer o conceito de trabalho escravo contemporâneo, atenuar a punição para as piores formas de trabalho infantil. E, principalmente, desejam manter sob seu domínio a terra que, muitas vezes, grilaram da coletividade ou roubaram de comunidades tradicionais. Passando bala em quem estiver no meio do caminho, em alguns casos.

A corrupção policial e o seu envolvimento em execuções, verificada em grandes metrópoles como o Rio de Janeiro, ocorre sem rodeios ou maquiagens na região de expansão agropecuária. Agentes públicos de segurança atuam à luz do dia como jagunços de fazendas, remunerados por elas.

Por exemplo, em maio do ano passado, uma ação conjunta das Polícias Civil e Militar do Pará levou à morte de nove homens e uma mulher no município de Pau D'Arco. Segundo o governo do Estado, os policiais estariam cumprindo mandados de prisão de acusados de assassinar um segurança de uma fazenda, mas a Comissão Pastoral da Terra afirma que foi uma ação de despejo.

Ações como essa têm sido comuns na região Sul-Sudeste do Pará, na Terra do Meio, nas franjas da Transamazônica e da Cuiabá-Santarém, no Nortão do Mato Grosso, no Oeste do Maranhão, entre outros lugares. De tempos em tempos, um grupo de pobres é emboscado e assassinado na Amazônia. Alguns são mais conhecidos e ganham mídia nacional e internacional, mas a esmagadora maioria passa como anônimos e são velados apenas por seus companheiros e familiares.

Nove pessoas foram assassinadas em uma área próxima a um assentamento em Colniza (MT), município que faz divisa com os Estados do Amazonas e Rondônia, em abril do ano passado. Dois foram mortos a facadas e sete com tiros de calibre 12 por pessoas encapuzadas, de acordo com sobreviventes. A história ganhou as páginas de jornais e de sites devido a colegas dedicados que acompanham o tema, para logo depois desaparecer diante da chacina de Pau D'Arco.

E com louváveis exceções como a de magistrados com coragem de condenar escravagistas, de procuradores que não dão trégua a quem mata e desmata e de policiais que realmente investigam até o fim independente dos responsáveis, o sistema de Justiça no campo tem servido para proteger o direito de alguns mais ricos em detrimento dos que nada têm.

Da mesma forma que nos morros e periferias cariocas, a violência na Amazônia não é uma questão do bem contra o mal. Em ambos os casos, há gente que ganha muito com o sistema do jeito em que está. Para quebra-lo, é necessário reinventar muitas práticas e sacudir o modelo. O governo Temer não irá fazer isso, da mesma forma que os governos Dilma, Lula, Fernando Henrique, Itamar, Collor e Sarney também não fizeram desde a redemocratização – não é necessário comentar que os militares foram ''sócios'' desse modelo. E não estamos falando de revolução, mas de simplesmente seguir as regras do jogo – coisa que é vista com desdém em nosso capitalismo de periferia.

Não gosto de dizer que o Estado tem sido ''ausente'' nessas regiões, pois seria um erro do ponto de vista conceitual. Contudo, as instituições que servem para garantir a efetividade dos direitos fundamentais da parcela mais humilde, como sua proteção e segurança, são mal estruturadas, defeituosas ou insuficientes. Enquanto isso, aquelas criadas para garantir o desenvolvimento econômico, seja através do financiamento do agronegócio, do extrativismo ou dos grandes projetos de engenharia, funcionam que é uma beleza.

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O massacre de Pau D'Arco ocorreu no mesmo dia em que Michel Temer autorizou o uso das Forças Armadas contra os manifestantes que ocuparam a Esplanada dos Ministérios contra as Reformas Trabalhista e da Previdência, em maio do ano passado. Ou seja, nessas duas situações, o Estado brasileiro declarou guerra ao povo em nome do poder econômico.

Isso não é coincidência. Vivemos um momento em que as instituições foram esgarçadas em nome de políticos que desejam se safar e de parte da elite econômica que deseja lucrar. Consequentemente, a garantia da dignidade humana é ignorada, o respeito à democracia é deixado de lado e o motor da impunidade gira livre no campo. A temporada de caça aos mais pobres está aberta no campo e deve durar, pelo menos, até às próximas eleições diretas.

Ouvi de uma liderança social na região Sudeste do Pará que pediu para não ser identificada, pois teme ser a próxima vítima, que ''no Pará, quem vive do crime organizado e da pistolagem está tranquilo e seguro, pode matar que não vai acontecer nada''. Em sua opinião, que publiquei neste blog há algum tempo, ''é uma situação para intervenção federal''. Chefiada por civis, não militares, ressalte-se.

Outra liderança que não vai ser identificada pela mesma razão, explica que a situação se agravou muito nos últimos tempos. ''Escancarou a prática dos crimes de encomenda, alguns deles com a presença de agentes públicos.''

''Há um sentimento de que as instituições, que já não funcionavam bem, deixaram de funcionar. Se isso ocorre em Brasília, imagina aqui no Pará'', afirmou uma dessas lideranças. ''O Estado perdeu a capacidade de garantir segurança pública e de investigar as mortes. Não há esclarecimento de crimes'', disse a outra.

Apesar da catástrofe na segurança pública do Rio de Janeiro estar presente com mais frequência nas manchetes e ser a plataforma de candidatura ideal, a capital não concentra os piores índices de violência do país – título que está nas mãos da paraense Altamira, segundo o Atlas da Violência 2017, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com 107 mortes para cada 100 mil habitantes. Parte da responsabilidade por isso é do grande crime chamado Belo Monte, uma das principais bandeiras do governo Dilma Rousseff.

Muitas cidades na Amazônia já ultrapassaram os limites da razão. Com a mesma facilidade com a qual se matam grupos de pessoas em comunidades pobres na capital carioca, são assassinados trabalhadores, lideranças e até políticos no segundo maior estado do país. Com a anuência e a cumplicidade de parte do poder público.

Organizações e movimentos sociais do Sul e Sudeste do Pará ouvidos pelo blog acreditam que casos que envolvem agentes públicos e violência no campo deveriam ser assumidos pela Policia Federal, Ministério Público Federal e a Justiça Federal, considerando o que chamam de incapacidade do sistema estadual em garantir proteção e justiça à sociedade – o que seria uma forma de intervenção.

O problema é que essa saída, como todas as intervenções, é um paliativo. Afinal, depois que o ''Estado provisório'' se for, tudo volta ao que era antes. A menos que sejam reconstruídas as instituições que garante qualidade de vida aos mais vulneráveis – o que custa caro e mexe com interesses poderosos.

O que acontece por lá também é fruto do modelo de desenvolvimento excludente e violento, que dá liberdade e impunidade ao poder econômico. Isso é agravado pela atual conjuntura política nacional, no qual o nível de confiança nas instituições (e, portanto, na aplicação da lei) é baixo e a certeza de liberdade do qual desfrutam representantes do atraso que mancham o nome do agronegócio brasileiro é alto. Ou seja, uma intervenção seria um fogo de palha. O futuro do campo no Pará depende de mudanças profundas que devem acontecer com o restante do país, a começar pela Praça dos Três Poderes.

Em 2009, proprietários rurais e suas entidades patronais paraenses chegaram a pedir intervenção no Estado uma vez que o poder público local não estava sendo célere – em sua opinião, claro – para garantir reintegrações de posse de terras – muitas das quais, com sérios indícios de grilagem. Agora, negam os múltiplos assassinatos no campo, achando que está tudo bem.

Opera-se com altos níveis de cegueira seletiva. Não é à toa, portanto, que eles e Temer sejam aliados.

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