COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Nestas horas em que centenas de pessoas morrem ou ficam desabrigadas em função do desabamento de encostas, enchente e transbordamento de rios, proliferam na mídia textos e entrevistas de “especialistas” que buscam apontar as causas ”naturais” e “antrópicas” que explicariam tais “tragédias”.


Paulo Alentejano*

Nestas horas em que centenas de pessoas morrem ou ficam desabrigadas em função do desabamento de encostas, enchente e transbordamento de rios, proliferam na mídia textos e entrevistas de “especialistas” que buscam apontar as causas ”naturais” e “antrópicas” que explicariam tais “tragédias”. Alguns destes textos e entrevistas são mais sérios, outros mais oportunistas. Uns mais pontuais, outros mais abrangentes. Alguns mais contundentes na crítica aos governantes de plantão, outros mais benevolentes. Mas, poucos vão a fundo na análise do conjunto de questões que estão envolvidos nesta complexa problemática.

O que nenhum texto, entrevista ou declaração que circulou nestes últimos dias disse é que tudo isto tem a ver com o modelo de desenvolvimento vigente no Brasil desde meados do século XX, baseado na modernização acelerada, seletiva e conservadora do campo e da cidade.

E a raiz do problema está na forma acelerada com que se expulsou do campo brasileiro no último século mais de 50 milhões de pessoas. A perpetuação do controle das terras pelo latifúndio e a modernização deste estão na origem da expulsão desta enorme massa de trabalhadores rurais, os quais foram precariamente absorvidos pelas grandes cidades brasileiras. A histórica reivindicação da reforma agrária foi não só negada, como substituída por uma política de incentivo ao desenvolvimento de tecnologias poupadoras de mão-de-obra no campo, levando ao aumento da concentração fundiária e ao desemprego e subemprego generalizados no campo e à conseqüente expulsão de grandes contingentes de trabalhadores rurais para as cidades.

E para onde foram estes trabalhadores? Para as áreas das grandes cidades que não interessavam ao grande capital imobiliário, por conta dos custos de produção mais elevados: as encostas dos morros e as várzeas dos rios. Não porque inexistam espaços urbanos vazios em melhores condições para a moradia destas pessoas, mas porque estes vazios estão controlados pelo capital imobiliário, aguardando a valorização destas áreas. Da mesma forma, há um sem número de prédios e apartamentos vazios nas nossas grandes cidades, mas estes não podem ser ocupados por estas pessoas, pois o “sagrado direito de propriedade” garante o direito dos proprietários de mantê-los vazios, mesmo que isto signifique empurrar milhares de pessoas para morar em áreas “de risco”.

Portanto, o que está raiz das centenas de mortes que se repetem a cada chuva é a propriedade privada!!! Enquanto o direito de propriedade imperar sobre o direito à vida estas tragédias se repetirão. Enquanto a reforma agrária não for feita, permitindo que muitos trabalhadores que foram expulsos do campo tenham o direito de para lá retornar e que outros que ainda lá estão não sejam expulsos, estas tragédias se repetirão. Enquanto a reforma urbana não for feita, colocando à disposição dos trabalhadores os terrenos e as moradias mantidos fechados pelos especuladores urbanos, estas tragédias se repetirão.    

É certo que a geografia do Rio de Janeiro favorece a ocorrência de deslizamentos de encostas e transbordamento de rios, mas não é certo que os trabalhadores só tenham a possibilidade de morar nestes lugares, nem que devam morrer por causa disso. É certo que também desabaram encostas onde havia mansões, mas só morreram os pobres. É certo que todos na cidade sofreram com as chuvas, mas o grau de sofrimento é incomparável.

E agora o que vemos se descortinar é mais um exemplo da hipocrisia das nossas elites, através da multiplicação das declarações de políticos e editorias da grande imprensa defendendo a remoção das populações residentes em áreas “de risco” em nome da “segurança destas próprias pessoas”. Trata-se da retomada de uma das práticas mais autoritárias levadas a cabo na construção do espaço urbano de nossas grandes cidades e que longe de proteger “os pobres” acentuou as nossas mazelas sociais. Ou esquecemos que as favelas removidas do entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas deram lugar a prédios de alto luxo enquanto a população que aí residia foi deslocada para lugares como a Cidade de Deus, repleta de problemas de infraestrutura e internacionalmente famosa pela violência.

Se o propósito é realmente o de proteger os trabalhadores que moram nas “áreas de risco”, então vamos destinar imediatamente para moradia as centenas de prédios – alguns inclusive públicos – que se encontram hoje vazios na cidade e no estado do Rio de Janeiro. Podemos começar pelos da região portuária do Rio, onde há inúmeros prédios e terrenos públicos e privados abandonados...

Mas, não, isso não é possível, afinal esta área já está destinada para os mega empreendimentos imobiliários voltados para a modernização da região portuária do Rio, visando a Copa do Mundo e as Olimpíadas... 

A hipocrisia das elites brasileiras é incomparável... E inconcebível!

 

*Paulo Alentejano – Professor do Departamento de Geografia da FFP/UERJ, integrante da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) e da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA).

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