COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Tem lugar em Tóquio uma Conferência Triangular dos Povos sobre o ProSavana. Este megaprojeto agrícola no norte de Moçambique segue modelos históricos do Japão, conta a pesquisadora japonesa Sayaka Funada-Classen.

 

(Fonte: Deutsche Welle Brasil | Imagens: DW)

A conferência em Tóquio (de 20 a 22 de novembro de 2018) reúne representantes de várias organizações não governamentais e instituições de pesquisa dos três países cujos governos deram origem ao projeto ProSavana: Moçambique, Brasil e Japão. É muito conhecida a contribuição do Brasil e as semelhanças da conversão do Cerrado (centro-oeste do Brasil) em zona de produção de soja com as ideias originais do ProSavana em Moçambique.

Menos conhecida, mas talvez até mais importante, é a contribuição histórica do Japão. Remonta cerca de cem anos na história colonial do Japão. Na altura, até já esteve envolvida a empresa japonesa Mitsui. Hoje em Moçambique, a Mitsui detém 50% da linha ferroviária do Corredor de Nacala, onde é desenvolvido o projeto agrícola ProSavana (os outros 50% são detidos pela brasileira Vale).

A DW África conversou com a pesquisadora japonesa Sayaka Funada-Classen antes do início da conferência.

DW África: Por que foi organizada a terceira Conferência Triangular dos Povos sobre o ProSavana em Tóquio?

Sayaka Funada-Classen (SFC): Como se sabe, o ProSavana é um modelo de desenvolvimento que quer transformar o interior da África num lugar de produção de matérias-primas, as chamadas commodities. É isso que está a acontecer em Moçambique e no Brasil, no Cerrado brasileiro. Bem, quem está por trás desses dois programas? É o Japão! Não apenas empresas privadas, mas também um fundo público japonês. Por isso, é importante que as pessoas das comunidades locais afetadas por esses gigantescos modelos de desenvolvimento venham ao Japão e levantem a voz para que os japoneses comuns, que estão a pagar por isso, possam entender o que está a acontecer longe do Japão. 

DW África: Poderia descrever um pouco mais este modelo de desenvolvimento que o Japão implementou no Cerrado brasileiro com o Prodecer e que tenta implementar agora em Moçambique com o ProSavana?

SFC: Então, temos que voltar para a história. Estamos a falar sobre o ProSavana ou o Desenvolvimento do Corredor de Nacala no norte de Moçambique. Nacala é um porto e ponto final do Corredor de Nacala, uma linha ferroviária que liga o interior do norte de Moçambique ao porto. Ela conecta especialmente as zonas de mineração de carvão [na província de Tete] com o porto de Nacala. Ao longo do caminho existem enormes áreas de produção agrícola e também zonas de plantações florestais.

Quando falamos sobre o ProSavana, temos a tendência de esquecer esta imagem. Mas é importante lembrar que o ProSavana é um dos pequenos programas de todo este conjunto do programa de desenvolvimento denominado "Programa de Desenvolvimento do Corredor Económico de Nacala". E nós temos uma origem histórica disso, infelizmente. 

DW África: Quando começou esta história japonesa?

SFC: Há cem anos, no início do século 20, trouxemos [os japoneses] o mesmo tipo de modelo de desenvolvimento para o nordeste da China. Na altura, nós costumávamos chamar aquela área de "Manchúria". Lá, o Japão Imperial estabeleceu uma linha ferroviária ligando as zonas de mineração de carvão ao porto e, em seguida, desenvolveu campos de soja. Então, aqueles que estiveram envolvidos nesse gigantesco programa de desenvolvimento regional foram a empresa ferroviária pública do Japão, bancos e também empresas como a corporação Mitsui. Hoje em dia, chamamos isso de "Parceria Público-Privada", supostamente uma coisa boa.

O ProSavana também começou como uma iniciativa de empresas privadas e públicas. Mas isso tem uma origem histórica! Durante o período colonial imperial do Japão, o setor público e o setor privado do Japão andaram de mãos dadas, planearam e aceleraram esse programa de desenvolvimento de corredores regionais. É isso na Manchúria que podemos chamar de "o primeiro programa ProSavana". 

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DW África: O que o Japão fez na Manchúria há cerca de cem anos?

SFC: A Manchúria ou a parte nordeste da China era famosa por florestas densas e árvores enormes, onde até viviam muitos tigres. A primeira coisa que fizeram foi cortar todas as árvores e depois usar a madeira para construir as ferrovias. E também enviaram os troncos para o exterior com vista a conseguir muito dinheiro, para desenvolver a mineração de carvão e depois produzir soja em larga escala. A floresta desapareceu. Tiraram todas as árvores porque tinham que fazer plantações de soja. Então, em termos ambientais o impacto foi enorme. A contaminação do ar pelo carvão queimado foi outro problema que aconteceu. 

DW África: E no Brasil, com o desenvolvimento da agricultura na região do Cerrado, o Japão também teve influência?

SFC: Sim, nos anos 70, o Japão enfrentou uma crise. Não podíamos importar mais soja suficiente. Atualmente, cerca de 90% da nossa soja é importada. Nos anos 70, essa percentagem era menor, mas ainda dependíamos da importação estrangeira. Então, enfrentamos uma crise muito difícil. Assim, o Governo japonês assinou um acordo com o Governo brasileiro – na altura uma ditadura militar – para transformar o Cerrado brasileiro num local de produção de soja para o Japão. Esse programa chamava-se Prodecer e foi levado para a região na década de 1980. Na altura, o Cerrado ainda era uma área famosa pela sua floresta densa. Até o nome indica isto: pois cerrado significa "fechado", portanto de difícil acesso por causa de muitas árvores.

Mapa do projeto ProSavana na dimensão em que originalmente foi planeado por Moçambique, o Brasil e o Japão. Fonte: DW

Há muitos emigrantes japoneses no Brasil. Quando o Japão enviava emigrantes japoneses para a Manchúria em 1930, enviava também outro grupo de emigrantes para o Brasil. E depois da Segunda Guerra Mundial, o governo japonês continuou enviando emigrantes para o Brasil. Mas eles não tinham terra e então olharam para o Cerrado. Naquela época, o Cerrado não era uma zona agrícola: era coberto pela densa floresta e também pensou-se que não era bom para a agricultura por causa da acidez do solo. Mas usando fertilizantes químicos eles perceberam que poderiam transformar o solo em terra produtiva. 

Então, para o Governo japonês foi uma ótima ideia levar o modelo que já tinha sido experimentado no nordeste da China para o Cerrado brasileiro. Mas depois tornou-se um problema político. Porque o Governo brasileiro teve que enfrentar as críticas do povo que teve um sentimento contra o Japão e o imperialismo japonês. Acharam que seria uma nova colonização pelos japoneses no meio do nada no Brasil. O Prodecer era originalmente para os japoneses, mas eles tinham que mudar o tom e, em seguida, o que fizeram foi convidar os migrantes brasileiros que estavam no sul do Brasil e também sair à procura de terra.

Mas então eles precisavam de um porto para que a soja pudesse ser exportada. O Japão não conseguiu desenvolver as ligações ferroviárias como na Manchúria, porque a Manchúria estava sob a influência do Japão e mais tarde até chegou a ser uma ocupação japonesa. Por isso, foi fácil trazer esse modelo de desenvolvimento regional para Manchúria. Mas no caso do Brasil, eles não conseguiram aplicar o mesmo modelo depois da Segunda Guerra Mundial e depois do fim do colonialismo. Foi um trabalho difícil e, no final, o Japão não chegou a importar a soja produzida no Cerrado. Quem recebeu os grãos de soja foi a empresa americana Cargill e a China. Como lição, o Japão achou que era importante assumir o controlo também da logística e não apenas do lado da produção.

DW África: O que está a acontecer agora com o Japão? O país e a JICA (Japan International Cooperation Agency), a agência japonesa de cooperação, ainda estão interessados ​​em realizar o ProSavana? O lado japonês até tem mais importância, já que os brasileiros se retiraram em grande parte deste projeto dos três países.

SFC: Eles [JICA] oficialmente não dizem nada ou dizem que o processo é importante. Mas informalmente todos dizem que foi uma ideia terrível pensar que seria possível levar o sucesso do Brasil e do Cerrado brasileiro para África, nomeadamente Moçambique. Mas todos também dizem, que não podemos parar. Não só para evitar perder a cara, mas ainda temos o mesmo Governo no Japão dos últimos seis anos. Esta é a outra razão pela qual o Governo japonês não está a parar com o programa. Mas se nos concentrarmos muito no ProSavana, não podemos impedir que algo mais terrível aconteça na região norte de Moçambique.

Como disse, esse tipo de modelo causará muitos danos ambientais e sociais. E infelizmente já está a acontecer em várias zonas na província da Zambézia. Lá, muitas pessoas foram expulsas por causa de uma empresa privada, propriedade de um ex-Presidente moçambicano que trabalha com uma empresa brasileira de soja para abrir campos de soja para exportação. 

DW África: Por que isso é possível?

SFC: Porque o nosso fundo público e a empresa privada japonesa Mitsui ampliaram e renovaram a ferrovia e o porto. Sem isso [ferrovia e porto], seria impossível para qualquer empresa privada abrir tantas terras e afastar as pessoas. Pois, é impossível obter lucro, se eles tivessem que transportar a soja produzida por caminhão que tem um custo muito superior à ferrovia. Então, a ferrovia facilita a transformação. E essa é uma transformação que levamos para o Brasil e, há uma centena de anos, para uma parte no nordeste da China. Estamos a repetir a nossa história e, como cidadã do Japão, gostaria que essa história chegasse ao fim.

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