COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Promovido pela Articulação das CPT’s do Cerrado – projeto da Comissão Pastoral da Terra (CPT) que reúne os Regionais presentes neste bioma –, o Encontro de Formação de Agentes do Cerrado teve como tema a “Financeirização de terras e regularização fundiária”. A atividade ocorreu entre os dias 30 de agosto e 02 de setembro no município de Hidrolândia (GO).

 

Texto: Elvis Marques – Assessoria de Comunicação CPT

Imagens: Elvis Marques e Rafael Oliveira - CPT Araguaia-Tocantins

“Regularização fundiária e a grilagem de terras são dois temas que estão intimamentes relacionados”, disse, logo no início do evento, Maurício Correia, da Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais da Bahia (AATR), que também aponta: “A regularização pressupõe irregularidade, e há quem questione o próprio termo, dizendo que já está defasado”. E além disso, o Encontro de Formação buscou contextualizar, por exemplo, a relação entre Regularização Fundiária no Piauí e o Banco Mundial, os investimentos estrangeiros em terras no Brasil e seus respectivos impactos às comunidades e povos do campo, e o quanto a terra brasileira está, hoje, intrinsicamente presente no mercado financeiro.

O advogado popular foi uma das pessoas que contribuíram com a formação dos cerca de 30 agentes da CPT nesses três dias de encontro. Também abordaram essa temática o professor do mestrado em Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás (UFG), Cláudio Maia; a doutoranda da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Carla Morsch; o mestrando em Ciências Sociais em Desenvolvimento, e Agricultura e Sociedade pela UFRRJ, Orlando Aleixo Junior; e o pesquisador da Rede Social de Direitos Humanos e doutorando, Fábio Pitta.

Esse espaço formativo ocorre a cada dois, sempre intercalado com o Encontro dos Povos e Comunidades do Cerrado, e busca abordar temáticas que fazem parte do cotidiano dos/as agentes de pastoral, assim como dos povos e comunidades do Cerrado. Encontrar exemplos e relatos que exemplifiquem essa linha ténue entre regularização fundiária e financeirização de terras não é algo difícil para o povo dos estados da Bahia, Goiás, e Piauí, por exemplo. Agentes desses estados apresentaram experiências vivenciadas nessas regiões sobre grandes empresas e os fundos de pensão, “grilagem verde”, e como se dá (ou não) a regularização fundiária diante dessas problemáticas.

“É muito injusto com a quantidade de tempo que temos morando lá em nossas terras, chegar gente de fora e não deixar nós trabalharmos”, argumentou, ao falar sobre a investida de empresas estrangeiras e fundos de pensão no Piauí, Cleidiana, da Comunidade Melancias, região sul do estado. Para a jovem, a chegada do agronegócio e do Plano de Desenvolvimento Agropecuário (PDA) do Matopiba – que abrange os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí, e Bahia –, trouxeram vários impactos sociais e ao meio ambiente, além de afetar diretamente o processo de regularização fundiária das comunidades do estado, e favorecer a grilagem de terras. “Trouxe os conflitos, a ‘proibição’ de trabalhar nas terras, o uso de agrotóxicos, o desmatamento, a diminuição dos níveis de água nos rios”, comentou.

Saulo Ferreira, agente da CPT em Goiás, relatou como tem ocorrido o processo de regularização fundiária no estado. “Começa com um acordo entre os governos de Goiás e o Chinês para expandir a fronteira agrícola nas regiões Norte e Nordeste de Goiás. E são regiões que concentram muitas comunidades quilombolas, camponesas e posseiras”.

Também é essa região de Goiás que concentra grande parte das terras devolutas do estado, conforme Ferreira. No município de Cavalcante, conta o agente, foi encontrada uma fazenda que tinha 27 andares, ou seja, “27 escrituras”. “A Lei de Regularização Fundiária de Goiás foi aprovada em dezembro de 2015. Você tinha que comprovar que estava na terra e tinha a posse, e pagaria um preço que estava até abaixo do mercado”, explica Saulo.

Entretanto, segundo o agente pastoral, para as comunidades essa regularização não se dava de forma tão simples assim. “Uma peculiaridade é o parcelamento em poucas parcelas do valor da terra, o que era o mesmo que dizer para as comunidades ‘vocês vão ter que sair’”. Isso porquê terras de até 100 hectares o valor era dividido em apenas seis prestações, e não existe em Goiás isenção como em outros estados. E entre 101 e 1000 hectares o valor seria parcelado em 24 vezes. “Percebe-se então que o processo de regularização fundiária era para expulsar quem estivesse ‘fora do jogo’, as comunidades, e assim colocar terras no mercado”, concluiu Saulo.

“Infelizmente temos que lucrar, e a terra é o produto mais fácil que temos neste momento”, frase que Altamiran Ribeiro, agente da CPT no Piauí, ouviu na Europa de representantes de Fundos de Pensão que estão adquirindo em terras no Brasil.

Maurício Correia (foto abaixo) explica que a legislação de terras do Brasil foi herdada do período de colonização de Portugal. “A legislação que trazem para o Brasil não é nova, e a gente pode afirmar que a propriedade latifundiária surge nesse período colonial, e a gente não conseguiu mais se livrar disso”.

Abaixo, o advogado detalha os quatro períodos da Legislação de Terras no Brasil. Confira:

Regime Sesmarial (1500-1821) – Terras concedidas pelo Rei de Portugal. Entre as condicionantes para a obtenção de terras estavam a demarcação e produção nas mesmas, senão ela teria de ser devolvida ao Rei, daí surge também a expressão “terras devolutas”.

Regime de Posse (1821-1850) – Nesse período, o Regime Sesmarial havia sido revogado, e foi um período sem legislação de terras em vigor. Então, essa época consiste, basicamente, em livre apropriação das terras. Os registros de posse eram feitos sem controles e autodeclarados.

Regime da Lei de Terras (1850-1889) – O Governo Imperial dita a Lei de Terras. Esse período acaba por inaugurar a propriedade privada no Brasil. E aqui surgi o mercado de terras, já que um artigo da Lei dizia que aquisição de terras se dava através de compra e venda.

Regime Republicano (1889-Atual) – A Lei de Terras continua a vigorar nesse período, mas a principal mudança foi que antes todas as terras devolutas pertenciam, basicamente, ao Governo Imperial. Com a Constituição de 1988, a União passa essas terras para os Estados.

Para o integrante da AATR, considerando todo o processo de regularização fundiária no Brasil, “é nítido que o que existiu durante estes cinco séculos foi um processo de expropriação dos povos originários, de não resolução dos problemas fundiários e de uma vasta e complexa legislação, uma sobre a outra, que não resolvem os problemas fundiários. O Brasil só resolveria a questão fundiária se fizesse um reordenamento fundiário em todo o País, o que está no plano da utopia”, contextualiza.

Com o apontamento destes quatros períodos de Legislação de Terras no Brasil, percebe-se então que a “função social da terra”, um termo relativamente novo, já existia desde a época do Império, no qual haviam condicionantes para ter a propriedade da terra, que se não fossem cumpridas levariam ao confisco das terras pelo Rei, conforme Maurício. É preciso entender a história agrária brasileira para perceber que o “caos fundiários que vivemos hoje começou há anos”, ressalta o advogado.

“E se a gente mudar o sistema? É utopia, mas a minha luta é mudar o sistema e nessa luta minha a terra vai ter outro valor” – Lourdes Francisco.

Principais estratégias de grilagens de terras

E falar de caos fundiário é também falar de grilagem de terras, na qual é possível se deparar, por exemplo, com a transformação de títulos de posse em matrículas. “A grilagem também se faz com desinformação”, aponta Maurício Correia. Para entender melhor onde estamos pisando, o militante explica alguns termos bem presentes quando o assunto é regularização fundiária.

O que é grilagem? Em síntese, de acordo com a AATR, a grilagem é uma prática que consiste na apropriação ilegal de terras a partir de fraudes e falsificações de registros imobiliários em cartórios.

SAIBA MAIS: No rastro da grilagem - Formas Jurídicas da Grilagem Contemporânea 

Problemas no tamanho da área: Retificação Judicial, Retificação extrajudicial, ou falsificação grosseiras (ex: rasuras);

Problemas na origem: ausência do destaque do patrimônio público: transformação de posse em propriedade (sem decisão judicial); Decisão Judicial (inventário formal de partilha) transformando posse em propriedade;

Registro em Cartório incompetente ou livro incorreto;

Usucapião: Judicial e Extrajudicial – grilagem com recibo judicial;

Acordos em ações discriminatórias: disposição do patrimônio público em favor de quem não cumpre os requisitos para regularização fundiária;

Registro de imóvel em terras públicas determinadas: Registro de imóvel com sobreposição em terreno da marinha, área de LMEO (rios), ilhas, praias e etc;

“Grilagem Verde”: O Cadastro Ambiental Rural (CAR) tem sido utilizado em ações possessórias (apesar da proibição expressa);

Corrida mundial por terras

Apesar de não ser possível fazer um inventário confiável, alguns dados estimam que a transferência global de terras agricultáveis fosse de aproximadamente 4 milhões de hectares por ano antes de 2008, conforme informações do Banco Mundial apresentadas no encontro pela pesquisadora Carla Morsch.

Entre outubro de 2008 e agosto de 2009 foram comercializados mais de 45 milhões de hectares de terra, dos quais 75% localizam-se no continente africano e o restante no Brasil e na Argentina, também segundo dados do Banco Mundial. Já no ano passado, em novembro de 2017, o portal Land Matrix havia registrado, em escala global, 1.340 investimentos em terras que recobriam uma área de aproximadamente 49 milhões de hectares.

No caso do Brasil, mais especificamente na região Oeste da Bahia, por exemplo, Carla Morsch tem realizado um mapeamento sobre os investimentos estrangeiros em municípios como Cotegipe e Mansidão. A pesquisa mostra, a princípio, que há pelo menos 59 empresas, de 14 nacionalidades, que estão investindo no mercado de terras apenas em municípios dessa região da Bahia, boa parte em formato de debêntures – que são títulos  de longo prazo emitidos por empresas de capital aberto ou fechado, com o intuito de captar recursos para financiar investimentos em tecnologia, máquinas, compra e arrendamento de terras. Funciona como um empréstimo, e tem sido um dos maiores instrumentos para financeirizar a terra.

“Em 2010 foi decretado a restrição de compra de terras no Brasil por estrangeiros e, com isso, as multinacionais estão investindo em empresas brasileiras no formato de debêntures”, contextualiza Orlando Aleixo Junior. Ele explica que, na prática, grandes empresas e redes multinacionais têm investido em títulos e ações de companhias nacionais, que funcionam como “braços” desses investimentos internacionais. “Essa manobra é uma ação estratégica para burlar a legislação brasileira”, afirma.

Para Morsch, essa história está longe do fim, pois o mercado de terras é uma tendência de investimentos crescente já que a terra não tem perda financeira e está em alta, e a apreciação da terra no Brasil em um período de 10 anos (2005 a 2015) é maior que o ouro, que subiu 219%, enquanto a terra teve um aumento de 248%, de acordo com dados da BOVESPA.

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