COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

O jornal espanhol “El Salto Diario” entrevistou Jeane Bellini, da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra, sobre a situação dos povos indígenas do Brasil, os impactos do agronegócio na Amazônia, o governo Bolsonaro e as consequências do acordo comercial entre a União Europeia e os países Mercosul, entre outros assuntos. Confira:

(El Salto Diario / Imagem: Agência Brasil)

ESPAÑOL - “El Acuerdo entre la Unión Europea y Mercosur impactará directamente en la subsistencia y la economía de las familias campesinas”


Bellini fala devagar, em um português calmo, para que possamos entendê-la. Conversamos, é claro, pela internet, depois de uma de suas visitas a comunidades rurais. A situação no Brasil com a pandemia "está piorando", e que "chove no molhado". Em 2019, durante o primeiro ano de governo Jair Bolsonaro, as invasões de terras indígenas no Brasil aumentaram 135%. 60% desses conflitos por terra ocorreram na Amazônia, que também concentrava a maior violência com 84,4% das 32 pessoas assassinadas no período.

Ela nasceu nos Estados Unidos, mas está no Brasil há quase meio século. Jeane Bellini coordena desde 2015 a Comissão Pastoral da Terra (CPT), organização que apóia a luta camponesa, que oferece assessoria jurídica e documentos, e denuncia violações de direitos humanos e assassinatos. A CPT nasceu em 1975, durante a ditadura militar de Castelo Branco, como resposta à grave situação do campesinato e dos trabalhadores rurais, especialmente na Amazônia. Embora sua origem estivesse intimamente ligada à Igreja Católica, logo depois adquiriu caráter ecumênico.

Conversamos com Bellini sobre a situação dos povos indígenas do Brasil, o Governo Bolsonaro e o impacto do acordo comercial entre a União Européia e os países do Mercosul (Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina) que o Governo da Espanha está promovendo.

Quais são as maiores ameaças na Amazônia neste momento?

Existem muitas e variam de estado para estado. Por exemplo, em Roraima a maior ameaça são os 20 mil garimpeiros (garimpeiros ilegais) na área do povo Yanomami. Mas, sem dúvida, um dos grandes desafios enfrentados pelos povos e comunidades tradicionais, principalmente desde o golpe contra Dilma em 2016 e que se multiplicou exponencialmente com a chegada do Bolsonaro, é o que se chama grilagem de terra. Ou seja, a apropriação ilegal de terras públicas por meio de documentos falsos. O governo está fazendo todo o possível para tornar as leis existentes cada vez mais flexíveis para permitir o reconhecimento ou a regularização dos títulos de propriedade. São terras públicas, mas está sendo facilitado que sejam monopolizadas e adquiridas de forma privada. Ali vivem povos indígenas e comunidades tradicionais, são áreas de conservação e desenvolvimento sustentável, mas o Governo, em vez de reconhecer seus direitos e preservar essas terras, institucionaliza a grilagem para que essas terras cheguem ao mercado.

Qual é o valor do território para os povos nativos?

Para os povos nativos da Amazônia, a terra é um espaço de convivência. Por outro lado, as famílias seringueiras, ribeirinhas, quebradeiras de coco e coletores de castanhas formam comunidades que vivem do extrativismo, mas é um extrativismo que respeita e mantém a biodiversidade e o equilíbrio natural do ecossistema. Ambos são confrontados por empresas e invasores de terras que cortam suas árvores para criar pastagens ou arrasam a terra para abrir espaço para outros projetos. Para os povos e comunidades tradicionais, o território é o seu espaço vital e a sua identidade se constrói em torno do espaço geográfico que ocupam.

Qual é o papel das mulheres na defesa do território?

Numa época em que as grandes empresas dominam as patentes de sementes, as mulheres colhem e guardam as sementes. São elas que, diretamente ou junto com suas filhas e filhos, cuidam do gado, dos animais, das hortas, das mudas e da coleta dos frutos. Elas estão na linha de frente da luta.

E por que a Amazônia é tão importante para o agronegócio?

A Amazônia é a última fronteira agrícola. É onde há mais espaço para o agronegócio se espalhar. Infelizmente, no Brasil, o modelo latifundiário ainda predomina. É um modelo em constante expansão e que, em vez de buscar novas formas de cultivar e criar animais para aumentar a produtividade, busca cada vez mais terras para isso. Morei muito tempo no Nordeste do Estado de Mato Grosso, na margem sul da Amazônia. Naquela época, algumas empresas de soja começaram a aparecer na região, mas em nenhum momento pensamos que chegariam à Amazônia. Porque, na verdade, o maquinário usado no campo é tão pesado que, na época das chuvas, ele afunda no solo. Por isso acreditávamos que a Amazônia estava a salvo da indústria da soja. Mas, infelizmente, o que temos testemunhado nos últimos dez anos é o oposto. Há cada vez mais desmatamento na selva. Na verdade, o clima está mudando. A estação das chuvas já não é tão longa ou intensa como antes. Monoculturas de soja e outros produtos continuam se expandindo e avançando no mapa. A isso se somam as pastagens para a pecuária, que também se espalharam muito e que, afinal, são outra forma de monocultura.

Para que se destina a produção de monoculturas?

Como eu disse, as monoculturas de soja e as pastagens para gado aumentaram muito nos últimos anos na Amazônia. Esses produtos são destinados principalmente à exportação. No mercado financeiro, a soja é considerada uma commoditie, ou seja, está listada em bolsa. Infelizmente, ao longo da história, o Brasil e outros países considerados “em desenvolvimento” foram relegados à produção de matérias-primas como soja ou minerais. E enquanto esse tipo de produção era incentivado, ao mesmo tempo todo o processo de industrialização era abandonado. É nessa lógica que se baseia e se aprofunda o acordo comercial entre os países do Mercosul e a União Européia. No relacionamento bilateral, o Mercosul cumpre o papel de fornecedor de matéria-prima.

Que impacto você acha que a assinatura do Acordo UE-Mercosul terá para o Brasil?

O Acordo entre o Mercosul e a UE reflete perfeitamente o papel tradicional da América Latina, relegada à produção de commodities ou mercadorias para exportação. As commodities sempre precisam de mais terras para se expandir, como é o caso da soja, e isso tem implicações claras. Os territórios de povos indígenas e comunidades tradicionais são cada vez mais invadidos, causando mais desmatamento e deslocando pessoas que hoje são autossuficientes. Ao ficar sem terra, essas populações precisam se deslocar para as periferias das cidades e dependem da compra de alimentos. Famílias camponesas que produziam alimentos para o mercado regional ou local também são deslocadas. O Acordo UE-Mercosul terá um impacto direto na subsistência, na alimentação e na economia da agricultura familiar camponesa e dos povos tradicionais, sem dúvida. Não se pode aumentar a quantidade de terras dedicadas à produção de matéria-prima sem deslocar as pessoas que vivem naquele território.

Quem se beneficiará com o Acordo UE-Mercosul?

Tudo indica que serão beneficiadas grandes empresas do agronegócio, produtoras de grãos e carnes, além das mineradoras. Essas indústrias estão se espalhando não só na região amazônica, mas por todo o país.

Por que você acha que a sociedade civil na Europa deve lutar para que este tratado não seja assinado?

A pandemia nos ensinou que somos interdependentes. O que acontece em um país tem implicações para outros. E este acordo pode beneficiar a economia da UE, mas com grande custo, não só para a economia, mas também para a qualidade de vida das populações dos países do Mercosul. Um acordo que aparentemente favorece muito um lado e que fere proporcionalmente o outro não é um bom acordo. A maioria dos povos da Europa reconhece e deseja justiça social.

 

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