COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Por Campanha nacional permanente “De Olho aberto para não virar escravo” - CPT

 

Foto: Bom Jesus da Lapa, Campanha da CPT contra trabalho escravo - arquivo CPT Nacional

Os resultados do combate ao trabalho escravo em 2023 confirmam a tendência registrada nos dois anos anteriores: a retomada de números expressivos de fiscalização e de resgate, uma situação que, equivocadamente, alguns comentadores têm interpretado como a ressurgência de uma prática criminosa após 7 anos de “acalmia” (é sempre bom lembrar que número não é realidade: somente a parte do iceberg que a vigilância da sociedade e as investigações do poder público conseguem trazer para a superfície visível).

A mobilização da categoria dos Auditores fiscais do trabalho iniciada neste mês de janeiro está aqui para manifestar o desdém com o qual esses combatentes da primeira linha têm sido tratados pelos últimos governos, chegando ao extremo de faltar mais de 40% do efetivo teoricamente aprovado para ir a campo, sem falar do abandono na área de equipamentos e meios de trabalho. 

Nossa primeira saudação é para eles e para elas, nesta Semana Nacional dedicada à memória de heróis que tombaram neste combate, em Unaí em 28 de janeiro de 2004. Contra toda esperança, às vezes tirando leite de pedra, conseguiram mostrar para a sociedade que o trabalho escravo nunca parou. Pelo contrário, continuou grassando à sombra das políticas de abandono e precarização que presidiram ao destino do país. 

Números que questionam

Vejamos alguns dados. Pela quantidade de pessoas resgatadas, os 5 estados que em 2023 mais ‘escravizaram’ — Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul e Piauí (nessa ordem) — formam um quinteto surpreendente. Isso porque nele não estão estados habituados a frequentar essa classificação inglória como o Pará, Maranhão, Mato Grosso do Sul ou Bahia, estados nos quais, durante décadas, o trabalho escravo tem sido prática recorrente.

Outra curiosidade: este mesmo quinteto ‘2023’ já vem liderando desde 2021, mediante ínfima diferença na ordem dos fatores (com Minas alternando com Goiás na 1ª posição). Nele estão representadas todas as grandes regiões do Brasil: Sudeste, Centro Oeste, Sul, Nordeste... Todas? Falta aquela que, na ótica da história do trabalho escravo contemporâneo, “deveria” ser a principal: a região por onde iniciou grande parte da luta moderna contra essa prática: a região Norte (e a Amazônia como um todo).

Foto: João Ripper

 

Situações contrastadas

Nos últimos 3 anos, a metade dos resgates se concentrou em apenas 2 estados: Minas e Goiás, ficando os outros 3 estados do quinteto com 20% dos resgatados. Em todos eles, o trabalho escravo é concentrado em atividades realizadas no campo e ligadas ao agronegócio — com destaques para o peso do ramo do café e para o “retorno” do setor canavieiro: 

- A disseminação da prática é grande em Minas, menor em Goiás: é alto o número anual de casos identificados no estado mineiro (70 ou mais), comparado ao de Goiás (15 a 20). Se no ano passado 80% dos 739 resgatados de Goiás foram retirados de 4 canaviais e 2 lavouras, em Minas, a maioria dos resgates ocorreu em 2 setores: café (27 ocorrências) e carvoarias (12). Mesma situação em 2022, com a diferença de que, naquele ano, Minas resgatou 367 pessoas em 5 canaviais. Outro indício da disseminação do trabalho escravo em Minas: a prática foi flagrada em nada menos que 58 municípios em 2023 e 57 em 2022 (em Goiás: 18 municípios em 2023, 14 em 2022). 

- Em São Paulo: 27 dos 40 flagrantes de 2023 ocorreram fora do campo, mas metade dos resgatados foram encontrados no campo (196 deles em 6 canaviais).

- No Rio Grande do Sul: 9 em cada 10 resgatados foram retirados de apenas 3 estabelecimentos, e virou manchete nacional o caso das vinícolas de Bento Gonçalves (Garibaldi, Saltão & Aurora), com seus 210 resgatados, quase todos negros, trazidos da Bahia por um gato “pejotizado” por nome “Fênix”. Em 2022, o trabalho rural havia também representado 10 dos 12 casos ali encontrados, com destaque na maçã onde é costumeira a contratação de trabalhadores indígenas trazidos de Mato Grosso do Sul.

- No Piauí, o panorama é distinto: fora algumas lavouras de soja, o trabalho escravo é flagrado na extração de palha de carnaúba e em pedreiras, na atividade de britamento.   

No resto do país, em 10 estados a média ficou na faixa de 80 pessoas resgatadas: MA (107), PR (101), BA (94), MS (88), ES (77), AL (74), PA (74): esses mesmos estados têm ocupado posição semelhante ao longo dos últimos 3 anos (exceção: AL). Por fim, outros 11 estados, cada um com uma média de 30 resgatados (PB, SC, CE, TO, RR, RJ, PE, RO, MT, AM, DF). Apenas 4 estados não tiveram resgate (AC, AP, RN, SE).

2023: número recorde

O total de fiscalizações e de resgates realizados em 2023 supera qualquer número observado desde 2010. O ano de 2023, por si só, representa o dobro da média registrada entre 2010 e 2022. Mesmo assim fica essa dúvida: quantas pessoas nesta condição não foram resgatadas? Quantas situações semelhantes deixaram de ser denunciadas ou investigadas?

E mais essa pergunta: por que mistério a região Norte e a Amazônia teriam escapado da “nova onda” de trabalho escravo no país? 

A média anual de resgates na Amazônia — 2.000 pessoas por ano no período 2003-2012 — caiu abaixo de 500 resgatados anualmente a partir de 2013, ficando na média de 300 por ano entre 2013 e 2018, e 235 de lá para cá (em 2023: 285). Paralelamente, verificamos que a média de fiscalizações de trabalho escravo na Amazônia, que era de 150 por ano entre 2003 e 2015, de lá para cá, caiu abaixo de 100, com exceção em 2017 (114) e 2021 (140). 

Foto: João Ripper

As dificuldades de acesso, mas, sobretudo, a desarticulação e os retrocessos nas políticas de controle ambiental, reforma agrária e fiscalização dos territórios, devem ser relacionados a esse recuo. Difícil é acreditar que a situação hoje visível na Amazônia seja reflexo da realidade: ela mais traduz um déficit crucial de fiscalização e coordenação das ações, e remete a problemas criados por anos de sub investimento em contratação e infraestrutura. 

Neste contexto, o anúncio, feito em junho de 2023, de um concurso visando repor 900 vagas na carreira da Auditoria Fiscal do Trabalho, soa como um alívio, porém não garante que serão providos os cargos tão necessários nas regiões hoje entre as mais deficitárias, se for considerada não apenas a população ativa existente, mas também a extensão do território a ser fiscalizado e suas dificuldades próprias. Hoje, na Amazônia, estão lotados em torno de 200 AFTs, menos que em São Paulo (292), Minas Gerais (223) ou Rio de Janeiro (216); o Norte tem 137 Auditores: menos que o Rio Grande do Sul (145). 

Trabalho escravo doméstico

Um destaque importante nos últimos anos é a frequência de flagrantes no trabalho escravo doméstico (96 casos desde 2021). Uma atividade emblemática, essencialmente feminina, não exclusiva do ambiente urbano: entre as 41 pessoas resgatadas de serviços domésticos em 2023, 11 laboravam em residências rurais. O quinteto de estados liderando neste ramo tão emblemático da cultura escravagista é quase o mesmo já citado, só trocando Piauí por Bahia: SP (11), RS (7), BA (6), MG (5), GO (2, sendo equiparado com RJ e PE). 

Emblemático, o trabalho escravo doméstico pode ser assim considerado não só pela tradicionalidade desta prática em um país que tem 5,8 milhões de pessoas empregadas em serviços domésticos (92% são mulheres e 65% delas, negras), mas também pela força e recorrência das narrativas de naturalização apresentadas pelos próprios empregadores, encampadas por setores da mídia ou mesmo ratificadas por membros eminentes da magistratura, como ocorreu no caso recente — escandaloso — da empregada Sonia, mulher negra, com deficiência auditiva profunda, mantida analfabeta, sucessivamente resgatada e ‘retornada’ ao lar dos seus patrões catarinenses, auto referidos como “pais afetivos” de uma senhora relegada por quase 40 anos no quartinho da casa grande. Quantas outras ‘Sonia’ precisarão aguardar uma vida para sair desta condição? Quem falhou? 

A cor da servidão

Nas características recorrentes das pessoas tratadas em condição análoga à de escravo está a cor: no registro oficial do Seguro-Desemprego onde, a partir de 2003, todo resgatado tem o nome inserido, apuramos que, entre as 8.309 pessoas incluídas entre 2016 e 2022, 6.813 se autodeclararam como pardas (65,2%) ou como pretas (16,8%): 4 em cada 5. 

Foto: Reprodução do documentário "Servidão"

É equivocado imaginar que cenas como as expostas no filme Pureza, de Renato Barbieri, ou relatadas no documentário Servidão, do mesmo diretor — lançado nesta semana no Brasil — remetam a outras épocas, nas quais imperavam violência, brutalidade e humilhação, nas mãos de feitores e gatos extrapolando ou “fugindo” do controle de seus contratantes. Casos recentes ilustram a repetição ou a atualização de padrões de atuação que, poucas décadas atrás, eram a apanagem dos mais violentos recantos da Amazônia: aliciamento em regiões remotas de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, utilização de formas ilícitas de intermediação de mão-de-obra, mecanismos de endividamento compulsório, sujeição a jornadas exaustivas e a condições degradantes, humilhação, pistolagem e até tortura

Política de Estado, empenho de todos

A política de erradicação do trabalho escravo é uma política de Estado, construída a duras custas a partir de 1995. Ela sobreviveu aos inúmeros ataques contra ela empreendidos, seja para acabar com o conceito moderno (Art. 149 CPB) que rege a identificação do crime, seja para abalar a firme articulação interinstitucional que caracteriza sua execução ou inibir a autonomia de sua implementação, seja para tirar a eficácia da temida “Lista suja” ou ainda para facilitar práticas que inviabilizem a responsabilização dos autores diretos do crime ou seus cúmplices de facto (é o caso da terceirização desenfreada, hoje legitimada com a anuência de altos magistrados). Ou mesmo, por último, para propor fiscalizações com aviso prévio!   

Mesmo assim, avanços foram possíveis: hoje um Fluxo Nacional de Atendimento às vítimas do trabalho escravo orienta as ações coordenadas do poder público, do sistema de justiça e da sociedade; hoje Comissões estaduais de erradicação do trabalho escravo (Coetrae’s) e Comissão Nacional (Conatrae) exercem seu papel de vigilância e monitoramento; hoje autores de crimes até então cobertos por suposta imprescritibilidade respondem por seus atos; hoje pessoas em risco de trabalho escravo ou egressas desta condição (ainda bem poucas!) encontram iniciativas que poderão abrir outro ciclo em sua vida: o de uma vida digna (nesta parte, a CPT traz uma contribuição original com seu programa Raice - Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão). 

Ao fazer memória de Eratóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva, Auditores Fiscais do Trabalho, e de Ailton Pereira de Oliveira, seu motorista, tombados em Unaí, renovamos nosso compromisso com a causa da erradicação do trabalho escravo e chamamos a sociedade a redobrar vigilância, mobilizando-se em torno desta bandeira: “De olho aberto para ninguém virar escravo!”.

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