COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Família Ticianel é uma das das mais influentes no agronegócio do Matopiba; considerada “parceira privada” da Secretaria do Meio Ambiente no combate aos incêndios no Parque Estadual do Mirador, ela esconde histórias de conflitos fundiários, lobby político e corrupção

Por Alceu Luís Castilho, Tonsk Fialho e Bruno Stankevicius Bassi, especial para Agro é Fogo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Pedro Ticianel, de camisa, inaugura compensação ambiental da Agro Serra no Parque do Mirador (Divulgação/Agro Serra)

Todos os anos, o inverno chega trazendo apreensão àqueles que vivem e tiram seu sustento do Cerrado maranhense. O sol, mais quente a cada temporada, seca as plantas e os cursos d’água. Mata os animais de criação. Os ventos espalham a poeira dos canaviais. E o medo de novas queimadas cresce entre as mais de 260 famílias que fazem do Parque Estadual do Mirador seu lar.

Um medo mais do que justificado: em 2019, durante a fase mais intensa da estiagem, a região sofreu incêndios massivos, que atingiram um quarto da área total do parque, segundo dados da plataforma Alarmes, do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa/UFRJ). Diante da falta de recursos para conter as chamas no local, uma força-tarefa federal chegou a ser enviada no fim de agosto, como parte da Operação Verde Brasil.

De acordo com o Boletim de Monitoramento de Queimadas no Estado do Maranhão, elaborado pela Secretaria de Meio Ambiente (Sema), o Parque Estadual do Mirador vem sendo a unidade de conservação com maior número de focos de incêndio no estado. Em 2022, foram mais de 490 focos registrados. O ano passado foi também o período de maior dispersão das chamas, que atingiram 211 mil hectares do parque – o maior índice da década.

De acordo com os dados de Conflitos no Campo envolvendo o uso do fogo de 2019 até 2022, sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) por meio do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (CEDOC – CPT) e analisados a partir das formulações da Articulação Agro é Fogo, quando observamos a distribuição geográfica das queimadas entre os conflitos por terra, identificamos que nesse período essas violências predominaram no Cerrado, com 39% das ocorrências, seguido da Amazônia, com 28%. Todavia, se somarmos as áreas de Cerrado com suas zonas de transição (onde também se localiza o Maranhão), nelas estão quase 56% de todos os conflitos desse tipo.

Entre os grandes projetos de desenvolvimento, o Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, conhecido como Matopiba, se localiza em áreas de Cerrado e transições. Os municípios que compõem essa região totalizam 24% de todos os conflitos por terra envolvendo fogo entre 2019 e 2022. O próprio Matopiba corresponde a 39% dessas violências no contexto do Cerrado. Sobre quem foi afetado pelos conflitos envolvendo fogo, em 2022, há um destaque importante para os/as posseiros/as como principais alvos de queimadas, em 30% dos conflitos.

Boa parte desses casos se deve às queimadas que afetaram pelo menos 36 comunidades do Parque Estadual do Mirador, no Maranhão, onde as empresas que gerenciam a unidade de conservação fingem não existir sujeitos que tradicionalmente cuidam, protegem e trabalham naquele território. Mas, afinal, quem provoca as queimadas no Mirador?

Veículos de imprensa do Maranhão e informes da própria Sema frequentemente atribuem a responsabilidade aos próprios moradores do parque, que causariam os incêndios florestais devido ao manejo impróprio do fogo para limpar pequenas áreas de roça.

Essa versão, no entanto, é contestada pelas comunidades ouvidas pela reportagem do De Olho nos Ruralistas, que viajou à região em 2022 e 2023. Segundo líderes locais, as queimadas são fruto da ação de fazendeiros e empresários do Sul e Sudeste que atuam no entorno do parque.

Um deles, em especial, abordou a equipe durante as filmagens — o observatório está fazendo um documentário na região — e disse que o canavial poderia “pegar fogo” enquanto estavam lá. O nome desse fazendeiro é Pedro Augusto Ticianel, usineiro e dono da Agro Serra.

Empresa é conhecida na região, nem tanto no resto do país

A Agro Serra Industrial representa o caso curioso de uma  gigante do agronegócio relativamente desconhecida entre aqueles que cobrem o setor. Com sede em São Raimundo das Mangabeiras e com mais de 30 anos de existência, a usina responde por 70% de toda a produção de etanol do Maranhão, abastecendo 52% da demanda por biocombustíveis no estado. Além da atuação no setor sucroenergético, o grupo  planta soja, distribuindo mais de 600 mil toneladas na região.

Flávio Dino anunciou novos investimentos da BrasilAgro ao lado de Pedro Ticianel em 2018. (Foto: Divulgação/Governo do Maranhão)

Em 2017, a Agro Serra bateu pela primeira vez a marca de 2 bilhões de litros de etanol produzidos e consolidou sua expansão por meio de uma sociedade com a gestora agrícola Brasil Agro S/A., com quem administra a Fazenda Parceria IV, de 15 mil hectares, destinada ao plantio de cana. O negócio foi celebrado na época pelo ex-governador maranhense Flávio Dino – então no PCdoB, hoje no PSB. Hoje ministro da Justiça, ele saudou a promessa de R$ 1,4 bilhão em investimentos na ampliação da produção de etanol e posou para foto ao lado dos dirigentes das duas empresas.

Fundada em 1986, a Agro Serra surgiu como um desdobramento da Destilaria de Álcool Libra. Nos anos 70, o empresário paulista Serafim Adalberto Ticianeli iniciou o plantio de cana na região de Diamantino (MT). Os negócios de Serafim deram origem ao grupo, que ainda é tocado por familiares do patriarca.

Na década seguinte, os negócios da família se expandiram para o Maranhão, com a fundação da Agro Serra em São Raimundo das Mangabeiras, ao lado do município de Balsas, no sul do estado. Para administrar o negócio, Serafim nomeou seu irmão, Pedro Augusto Ticianel, que assumiu as terras no Nordeste.

As mudanças na grafia do sobrenome, aliás, foram comuns ao longo dos anos, variando entre Ticianeli, Tizianel e Ticianel, de acordo com a época em que foram redigidos os registros judiciais e fundiários. De modo geral, Pedro e sua família adotaram o Ticianel, enquanto os herdeiros de Serafim mantiveram o Ticianeli.

Em 1994, com apenas 43 anos, Serafim, o fundador do grupo, se atirou do 13º andar de um prédio do Brooklin, na zona sul de São Paulo. A partir da tragédia, a família teve de se adequar: Pedro Augusto continuou com os negócios no Maranhão, enquanto Cintia Cristina Ticianeli, filha de Serafim, passou a integrar a diretoria da usina do Mato Grosso, com apenas 20 anos.

Atualmente, é ela quem atua na linha de frente dos negócios da família, tendo presidido o Sindicato dos Produtores de Cana, Açúcar e Álcool do Maranhão e do Pará. Em 2003, Cintia deixou o cargo na usina do Mato Grosso para assumir os negócios em Balsas, no Maranhão, trocando de função com seu irmão, Celso Eduardo Ticianeli.

No Mato Grosso, Celso administra a usina ao lado de um tio, Luiz Carlos Ticianeli, irmão de Pedro e Serafim. A terceira filha do fundador, Claudia Maria Ticianelli Battistella, adotou o último sobrenome após se casar com Rafael Ramos Battistella, neto do fundador do Conglomerado Battistella, que envolve revenda de caminhões Scania, plantio, beneficiamento e venda de móveis de madeira de pinho, e a administração do Porto de Itapoá (SC). A empresa também vende ações na Bolsa de Valores.

Base da Sema foi instalada em fazenda da Agro Serra

Um dos relatos mais comuns encontrados durante a viagem ao Parque Estadual do Mirador é a de que os fiscais da Sema atuariam em conjunto com a Agro Serra para perseguir os camponeses que moram na unidade de proteção.

Abarcando dois terços da área do município de Mirador, o parque abriga 260 famílias, divididas em mais de cinquenta povoados. São, em sua maioria, pequenos agricultores, que chegaram à região na década de 1920 e que, a partir dos anos 70, tiveram de lutar contra a ação de grileiros que tentavam lotear as terras na bacia do Rio Itapecuru. Na tentativa de dirimir os conflitos agrários, o governo do Maranhão criou o parque em junho de 1980, sem, no entanto, garantir o acesso das posseiras e dos posseiros à plena cidadania.

Segundo o relatório “Conflitos e lutas dos trabalhadores rurais no Maranhão – Ano 2021”, publicado pela Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (Fetaema), os conflitos reacenderam a partir de 2016, quando fiscais da Sema passaram a agir de forma intimidatória contra as posseiras e os posseiros, notificando-os para que removessem o gado – principal fonte de proteína para as famílias da região – e as cercas das roças de mandioca de dentro do parque. Em 2020, foram realizadas operações contra a caça ilegal que, segundo os moradores, usou de força desproporcional.

Uma das principais queixas das comunidades do Parque Estadual do Mirador é a de que as autoridades fazem vistas grossas quanto às denúncias de contaminação do Rio Itapecuru por agrotóxicos lançados pela Agro Serra, além de não atuarem contra a queima da cana que ocasionam os incêndios florestais.

A relação entre Agro Serra e Sema é comprovada pela instalação de uma base de apoio da secretaria dentro de um imóvel da família Ticianel. Em 2021, o local sediou treinamentos de brigadistas para combater as queimadas, em parceria com o Corpo de Bombeiros Militar do Maranhão e a Defesa Civil.

A parceria entre o clã e o governo maranhense também é vista e é  expressa pela relação direta entre Pedro Ticianel e Flávio Dino. Ocorre que o irmão do atual ministro da Justiça, Salvio Dino Junior, advogou para a Agro Serra entre 2013 e 2015, em processos trabalhistas, e anteriormente em 2008, em processo de matéria diversa. Além do encontro em 2018, Dino prestigiou os Ticianel em 2017, durante a inauguração da fábrica de calcário da família em São Raimundo das Mangabeiras.

Clã Ticinel, Agro Serra, avança sobre terra indígena

Por meio da subsidiária Agro Pecuaria e Industrial Serra Grande Ltda. e dos CPFs de Pedro Augusto Ticianel e de seus filhos Túlio Fraxe Ticianel, Anna Kelly Fraxe Ticianel Frota e Pedro Augusto Ticianel Júnior, o grupo é dono de pelo menos 186,8 mil hectares de terras na região do Parque Estadual do Mirador, divididos entre 66 fazendas, conforme dados do Sistema de Gestão Fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Sigef/Incra).

Pelo menos sete fazendas estão sobrepostas à Terra Indígena Porquinhos dos Canela-Apãnjekra, conforme revelado pelo dossiê “Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas”, publicado em abril pelo De Olho nos Ruralistas.

São as Fazendas Estiva e Romaria, em nome da Agro Serra Industrial, que somam 12.270 hectares incidentes em território Kanela; além das Fazendas Irajá/Cacimbas e Jacaré, em nome de Pedro Augusto Ticianel; Tucum e Descanso, de Cintia Cristina Ticianel; e Olho D’Água, de Celso Eduardo Ticianel. Ao todo, o clã possui 21.036 hectares dentro da TI Porquinhos, o que equivale a 7% de toda a área delimitada desde 2009 para reestudo.

De Olho nos Ruralistas procurou a Agro Serra para comentar os dados, porém não obteve retorno até o fechamento da reportagem.

Dossiê “Os Invasores” mostra fazendas da família Ticianel sobrepostas à TI Porquinhos, no Maranhão. (Imagem: Eduardo Carlini/De Olho nos Ruralistas)

História vai da Lava Jato à prisão de governador

Apesar desse enorme estoque de terras no Maranhão, a família enfrenta um longo processo  de recuperação judicial, oriundo das dívidas adquiridas pela Destilaria Libra junto ao Banco Pan. Ao lado da Odebrecht, a Agro Serra é uma das empresas citadas nas denúncias de conflito de interesses ligadas à passagem do ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sérgio Moro pela consultoria Alvarez & Marsal, conforme revelado pelo UOL. O grupo maranhense pagou R$ 120 mil à firma estadunidense para que conduzisse seu processo de recuperação judicial em 2017, pouco após ter sido citada na Operação Lava-Jato, em um esquema que envolveu o pagamento de propina para a liberação da Ferrovias Norte-Sul e da Integração Oeste-Leste.

Origem das dívidas, a Destilaria Libra conecta os Ticianel a outro grupo político. A usina pertence à Libra Etanol Participações Societárias, composta pelo irmão de Serafim Ticianeli, Luiz Carlos Ticianel, pela viúva Izelia Ticianeli, pelo gerente operacional da destilaria Pedro Aires e por Piero Vincenzo Parini.

Parini já presidiu o Sindicato das Indústrias Sucroalcooleiras do Estado de Mato Grosso (Sindalcool-MT), e em 2017 foi citado em termo de ajustamento de conduta da Odebrecht, como responsável pelo recolhimento de propina junto ao setor sucroalcooleiro, entre 2012 e 2013, em nome do antigo Secretário da Fazenda do Mato Grosso, Marcel De Cursi – preso em 2015 ao lado do ex-governador Silval Barbosa (MDB) e condenado a treze anos de prisão.

Da corrupção às queimadas, da política à tomada do território, histórias como as do grupo Agro Serra e da família Ticianel se repetem pelo país e passam frequentemente despercebidas pelo grande público. O fogo que devasta o Cerrado — e a Amazônia, o Pantanal e o Pampa — tem nome e CNPJ. Para combatê-lo, não basta apagar as chamas a cada ano. É necessário identificar e responsabilizar seus perpetradores — diretos e indiretos — e mapear suas conexões com o poder político e econômico.

A Agro Serra não opera sozinha. O conglomerado se insere em um grande complexo do agronegócio, que inclui outros gigantes como BrasilAgro, Raízen (joint venture entre a sucroalcooleira brasileira Cosan e petroleira holandesa Shell), Petrobras e Grupo Ipiranga, além do próprio governo do Maranhão. E que também inclui entidades de classe, sindicatos rurais e lobistas. Para entender a real disparidade de poder entre as comunidades atingidas e os empresários que as assediam, é preciso observar o contexto em que eles atuam, para além do território.

Por fim, em um momento de retomada das políticas ambientais de prevenção ao desmatamento e às queimadas, precisamos, mais do que nunca, fomentar o debate público sobre as causas estruturais da devastação de nossos biomas. Quando, senão agora, teremos a oportunidade de questionar o modelo produtivo expansionista do agronegócio? Até quando nos contentaremos em punir os jagunços e não os mandantes? Quantos mega-incêndios mais iremos assistir até entendermos que o caminho que trilhamos nos levará irremediavelmente à destruição — para o lucro de alguns poucos latifundiários e seus aliados em Brasília e na Faria Lima?

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