COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Pesquisadores Juruna e ribeirinhos da Volta Grande do Xingu, com acadêmicos de diversas áreas da ciência, propõem o Hidrograma das Piracemas, uma ação necessária para que peixes voltem a se reproduzir

Por Clara Roman e Thais Mantovanelli | Instituto Socioambiental
 
 
 O rio Xingu precisa pulsar para que a vida possa existir. O pulso de inundação é a fonte do ciclo da vida na maioria dos rios amazônicos. Os Juruna Yudjá da Terra Indígena Paquiçamba e as comunidades ribeirinhas da Volta Grande do Xingu sabem disso há muito tempo.

Para defender a promoção da vida, nesta quinta-feira (27/07), eles lançaram a animação #PulsaXingu, que apresenta a proposta do Hidrograma das Piracemas. Trata-se de uma proposta baseada em critérios ecológicos para que a Usina Hidrelétrica de Belo Monte libere volumes de água mais adequados para reprodução dos peixes.

Desde o barramento, em 2015, os povos impactados pela usina e a concessionária Norte Energia travam uma disputa pela água. Belo Monte desviou 70% do fluxo do rio Xingu para a produção de energia. Esse desvio é chamado Hidrograma de Consenso pelo empreendedor, “mas de consenso não tem nada”, como afirma a animação.

Com essa vazão de água estabelecida pela Norte Energia, os peixes e outras espécies aquáticas começaram a morrer, uma das cenas reais que foi ilustrada no filme. Em 2016, caracterizado pelos Juruna como o ‘ano do fim do mundo’, foram encontradas muitas tracajás mortas na região em locais que antes eram áreas de alimentação e reprodução desses animais. Toneladas de peixes mortos também foram observadas.

A animação lançada hoje traz uma proposta produzida pelos pesquisadores do MATI (Monitoramento Ambiental Territorial Independente) da Volta Grande do Xingu. Composto por cientistas locais e acadêmicos, o coletivo monitora diariamente os impactos provocados pela operação de Belo Monte. A partir dessa minuciosa observação e de análises baseadas em metodologia participativa, os pesquisadores do MATI lançam uma proposta de revisão do sistema de operação de Belo Monte como condição para proteção da vida na região, simulando o pulso de inundação do rio Xingu: o Hidrograma das Piracemas.
 
Ele tem piracema no nome porque essa proposta garante a ocorrência de algumas dessas áreas de reprodução migratória dos peixes e que haviam sido destruídas com as vazões de água operadas hoje pela Norte Energia. Essa luta pelo direito de partilha de água em seus usos múltiplos é o que fundamenta as ações do MATI desde seu surgimento, em 2013, fundamentado nos conhecimentos ecossistêmicos dos povos tradicionais da região.

Para quem é da cidade, piracema é um nome novo. Mas, para quem mora na beira do rio, piracema é uma palavra comum, que todo mundo conhece. A piracema, ali na Volta Grande, é o lugar onde as peixas vão desovar e onde os alevinos (filhotes de peixe) se desenvolvem. São lugares muito especiais, bolsões que acumulam águas de maneira diferenciada, proporcionando um lugar escondido e pacífico e que demoraram milhares de anos para serem criados pela natureza.

Um dos grandes impactos da UHE Belo Monte constatados e descritos pelo MATI é a interrupção das piracemas. A água do rio já não chega nesses locais no tempo certo nem na quantidade adequada para garantir a reprodução das peixas. Hoje, nesse trecho do rio Xingu, algumas espécies só têm indivíduos velhos, que estavam lá antes da instalação da usina.

O MATI monitora as florestas aluviais, as dinâmicas de pesca e as piracemas. Na prática, os monitores vão diariamente para os seus locais de monitoramento e medem o nível da água em réguas instaladas na terra. Também fotografam o ambiente, anotam o comportamento dos peixes no local e observam outros fenômenos que podem estar acontecendo ali, de acordo com a quantidade de água e a época do ano. Depois, esse dado é cruzado com o dado de vazão de água liberado naquele dia, que é divulgado pela Norte Energia em seu site, conforme exigência da Agência Nacional das Águas (ANA).

Seu Sebastião, pesquisador do MATI e morador da Ilha do Amor na Volta Grande do Xingu, diz que as águas, quando chegam em novembro, conversam com as peixas e dizem: ‘venham, venham peixinhas, venham peixonas, vamos para  as piracemas’.

As peixas sabem ouvir esse chamado com o seu corpo e seguem a voz das águas junto com o seu fluxo que começa a crescer. É uma delicada conversa que demorou muito tempo para existir e que existe há muito tempo. Belo Monte rompeu essa delicada conversa milenar.

O leilão que permitiu isso durou apenas sete minutos.

Esse processo da interrupção da reprodução dos peixes é ilustrado na animação em dois momentos. Um deles é a ilustração de uma curimatá com ovas secas dentro dela. Essa situação – curimatás com ovas secas dentro delas – tornou-se parte do cotidiano dos Juruna desde 2015. As curimatás não encontram água suficiente no seu  local de desova, por isso elas se recusam a desovar e as ovas secam dentro delas.

“É preciso uma sincronização dos movimentos, para o peixe entrar numa área que está sendo alagada e essa enchente progredir gradualmente. Os peixes e outros organismos vivos precisam de uma resposta do ambiente, um sinal seguro, confiável, que se manifesta normalmente por uma sequência longa. A cada dia aumenta o volume de água, aí se tem um sinal claro. Isso evita que os peixes entrem, por exemplo, em uma área que vai secar repentinamente. Ou que desovem, desperdiçando uma energia acumulada ao longo do ciclo de um ano inteiro. Quando começa esse vai e vem motivado pelas torneiras de Belo Monte, todo esse equilíbrio é destruído”, explica o professor e ictiologosta Jansen Zuanon.

Cemitério de ovas

Outro trágico episódio ilustrado na animação é o cemitério de ovas,  registrado em 8 fevereiro de 2023.Josiel Juruna, coordenador do MATI, e outros moradores locais, encontraram centenas de milhares de ovas de curimatã apodrecendo na piracema do Odilo.

No dia anterior, fortes chuvas caíram na Volta Grande. Por conta disso, a água começou a alagar essa região. As curimatãs migraram para desovar na área alagada.

Uma expectativa apreensiva, preocupada, tomou conta do grupo, que retornou para a aldeia Muratu. No dia 8, a chuva havia cessado. E o pior se confirmou: a água do Xingu, em níveis muito abaixo das médias históricas, não tinha “segurado” a água na piracema, que havia refluído para o rio e esvaziado a área onde as ovas haviam sido depositadas pelos peixes.

No que antes era um berçário, o grupo encontrou o cemitério de ovas. “Foi uma catástrofe para a gente. Foi muito triste se deparar com esse momento”, disse Josiel. “Meu irmão Gilliard, que também estava lá, e ele como mais velho, falou que nunca tinha visto acontecer, nem meu pai nunca nem tinha visto isso acontecer”, conta.

A esperança: hidrograma das piracemas

O Hidrograma das Piracemas, proposta apresentada na animação, defende critérios ecológicos mais parecidos com o pulso natural do rio. Nessa proposta, advinda de pesquisa colaborativa, o fluxo de água começa a aumentar sutilmente a partir de outubro, ocorrendo um aumento mais substancial em novembro e uma elevação gradual até abril, quando começa a baixar.

Esse fluxo é tempo certo para as piracemas encherem paulatinamente, de forma que as peixas voltem a entender os sinais da natureza, desovando e garantindo a sua reprodução.

Essa proposta detalhada, fundamentada em uma minuciosa pesquisa científica, foi apresentada para o Ibama, órgão licenciador que deve definir o novo hidrograma antes de renovar a licença de operação da UHE Belo Monte, vencida desde 2021.

O presidente do órgão, Rodrigo Agostinho,  disse que a proposta está em análise em seminário organizado pela Procuradoria Geral da República em março. Em ocasião posterior, ele afirmou que qualquer proposta aprovada terá de garantir as condições para manutenção e promoção da vida na região.

 “A garantia que eu posso dar é que, com esse Hidrograma de Consenso (hidrogramas A e B operados pela Norte Energia), esquece a licença. A prioridade nossa é a vida no Xingu”, afirmou.

Numa das cenas da animação, aparece o zebrinha (Hypancistrus zebra). O zebrinha é um peixe ornamental muito bonito, bem pequeno, endêmico da Volta Grande do Xingu. Ele tem esse apelido porque suas listras lembram as listras de uma zebra.  Esse peixe só existe lá.

O cacique Gilliarde Juruna faz uma relação entre o zebrinha o povo Juruna Yudjá. “Nós, o povo Juruna da Volta Grande, somos como o Zebra. Estamos ameaçados de extinção pelos impactos de Belo Monte, que ameaçam a nossa vida, no presente, futuro e passado. E porque a gente precisa contar essa história pro mundo. Porque, assim como o Zebra, nós também só existimos, nós saímos, nós somos a Volta Grande do Xingu"

O Hidrograma das Piracemas é essa possibilidade de retomada da existência de toda a vida da Volta Grande do Xingu. Isso inclui os alevinos, que vão poder nascer e crescer nas piracemas, as curimatãs, que vão poder desovar, as tracajás, que vão se alimentar e desovar e os zebrinhas, que vão crescer e se reproduzir.

Ribeirinhos e o povo Juruna Yudjá da Volta Grande do Xingu, que compartilham uma história de longa duração com o fluxo das águas do Xingu, vão poder manter seu modo de vida. Para entender essa história, precisamos embarcar nas canoas de madeira dos povos da região, gente que tem canoas no lugar dos pés.

Assista à animação: 

https://www.youtube.com/watch?v=GFHhYo_ltVM&embeds_referring_euri=https%3A%2F%2Fwww.socioambiental.org%2F&embeds_referring_origin=https%3A%2F%2Fwww.socioambiental.org&source_ve_path=MjM4NTE&feature=emb_title

 

 

 

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