COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

A segunda reportagem publicada pelo Initum Media, veículo de comunicação sediado em Hong Kong, em parceria com a CPT, aborda o cotidiano e a luta das comunidades tradicionais geraizeiras do Vale das Cancelas, no norte de Minas Gerais, que enfrentam desde a década de 1970 a ameaça da monocultura de eucalipto e, mais recentemente, resistem contra a implementação do projeto de mineração de capital chinês intitulado "Bloco 8", ainda em fase de licenciamento.

Mais de 2 mil pessoas que vivem, há mais de 400 anos, em 73 comunidades espalhadas em uma área de aproximadamente 228.000 hectares, veem sob risco os seus territórios e modos de vida. Naquele espaço, os geraizeiros constroem e reproduzem suas relações econômicas, sociais, políticas e culturais por meio do uso comum da terra, das práticas da agricultura familiar, da criação de gado em grandes áreas coletivas compartilhadas, da prática extrativistas, e outras.

Se licenciado, o empreendimento Bloco 8, da Sul Americana de Metais S/A (SAM), empresa do grupo chinês Honbridge Holdings, impactará diretamente pelo menos dez comunidades geraizeiras, localizadas na área onde a SAM pretende instalar apenas o complexo de extração do minério de ferro. São elas: Diamantina, Vaquejador, Miroró, Tamboril, Ribeirão do Jequi, Batalha , Córrego do Vale, Lamarão, Jibóia, São Francisco. A área também inclui 12 cemitérios. Leia na íntegra:

Leia também a primeira reportagem publicada e saiba mais sobre o projeto Bloco 8: Por que alguns projetos de investimento estrangeiro da China foram "embargados" na fase de avaliação de impacto ambiental?

 

Vida e resistência das comunidades tradicionais do Cerrado em face aos empreendimentos de minério chineses

"Pra falar a verdade, acho que nascemos em um paraíso, com água boa, terra boa e mata boa ... Meu país das maravilhas."

Fotografia: Nilmar Lage 
Texto: Ning Hui, Cao Jingyi

"Geraizeiro? Geraizeiro é o povo que colhe os frutos da mata e que cria o gado”.

Os geraizeiros são comunidades tradicionais que há muito tempo habitam os cerrados do norte de Minas Gerais, regiões também conhecidas como Gerais. O Cerrado brasileiro, com seus 200 milhões de hectares, é a savana tropical de maior biodiversidade do mundo. 

Os geraizeiros, adaptados ao clima semiárido do Cerrado há gerações, são inteiramente dependentes dos recursos naturais da região para sua sobrevivência.

Com sua vegetação sendo desmatada duas vezes mais rápido que a da Amazônia, o Cerrado já perdeu mais da metade da área de mata nativa e corre o risco de desaparecer. O agronegócio, com sua produção mecanizada de soja e de outras lavouras e expansão de áreas para gado, tem gerado um impacto significativo na savana brasileira. Os recursos minerais da região também são alvo de empresas e governos estrangeiros, afinal, não foi por acaso que Minas Gerais recebeu este nome. No século 17, durante o período colonial, o estado abrigou minas de ouro e outros metais preciosos, e a partir do século 20, permitiu a extração de minério de ferro.

A monocultura comercial de eucalipto, com início na década de 1970, ainda é uma ameaça às nascentes de água, ao cultivo de alimentos e à coleta de ervas medicinais e madeira que abastecem as 73 comunidades do território tradicional geraizeiro do Vale das Cancelas, no norte de Minas Gerais, entre os municípios de Grão Mogol, Padre Carvalho e Josenópolis. Hoje, as mais de 2.000 pessoas que habitam a região temem que o projeto de mineração de ferro intitulado "Bloco 8" contribua ainda mais para a destruição de suas comunidades tradicionais.

A SAM - Sul Americana de Metais S/A, empresa brasileira adquirida pelo grupo chinês Honbridge Holdings (Hong Bridge Capital Limited), com escritório central em Hong Kong, ainda está no processo de licenciamento do projeto, que abrange uma área que irá impactar diretamente dez comunidades. 

O Projeto Bloco 8, com plano de retirada substancial de água da barragem de Irapé, é uma grave ameaça para as comunidades geraizeiras que convivem com o clima semiárido da região. 

“Ser geraizeiro é ter essa vida de liberdade nas planícies, nos vales e rios. A esteve aqui desde sempre", diz o geraizeiro Adair, "morando nas planícies, criando gado no planalto, colhendo frutas e ervas na mata e cultivando alimentos no nosso quintal. Mesmo que o solo aqui não seja fértil, podemos cultivar de tudo, porque estes mesmos cultivos aportam nutrientes uns aos outros." Há estudos apontando que os geraizeiros habitam o Cerrado há sete gerações, mas Adair discorda: a lápide mais antiga do cemitério da comunidade tem 400 anos.

“O geraizeiro sempre teve liberdade, mas desde que o monocultivo de eucalipto começou a se expandir e invadir o território, nós perdemos grande parte do planalto antes usado na criação de gado”. Adair segue: "e agora não vão ser só essas empresas de eucalipto, mas de mineração também... É assim que nós vamos perdendo a nossa liberdade." Segundo Adair, na década de 1970, quando teve início o monocultivo de eucalipto, o governo garantiu que a devolução de terras se daria em 25 anos. Essa promessa não foi cumprida.

De acordo com estudo feito por Sandra Helena Gonçalves Costa, da Universidade de São Paulo, a grilagem teve início nas décadas de 1920 e 1930, quando do processo de parcelamento e demarcação das terras no norte de Minas Gerais. Desde a década de 1960, o governo, em conjunto com as elites locais e madeireiras que atuam na produção de carvão para o ramo siderúrgico, cedeu mais de 500.000 hectares para madeireiras apenas na região de Grão Mogol, ameaçando assim os territórios de vida das comunidades geraizeiras locais. 

Com essa perda de território, muitos geraizeiros foram obrigados a trabalhar nas plantações de eucalipto e na produção de carvão, ao mesmo tempo que lutavam para reconquistar seu modo de vida tradicional. A retomada do território geraizeiro foi dificultada ainda mais pela presença de territórios indígenas e quilombolas na região.

Mas esses povos sabiam o que estava em jogo caso não lutassem para reaver suas terras. Tendo em vista o histórico de tomada de território, as comunidades geraizeiras acreditam que o Projeto Bloco 8, com suas 26 toneladas de minério bruto e investimento previsto de US $ 3 bilhões, terá o mesmo impacto negativo na região, independentemente das promessas feitas pelo governo. 

Por mais que o futuro do empreendimento ainda não seja certo, todas as fases de desenvolvimento do projeto vêm alarmando a população.

Comunidade geraizeira do Vale das Cancelas, Minas Gerais.

“Quando tudo aconteceu eles desapareceram, deixando para trás uma comunidade destruída. A gente sabe bem o que aconteceu em Mariana e em Brumadinho”, diz o geraizeiro Valdeir. Em 2015, o rompimento da barragem de minério de ferro em Mariana matou pelo menos 20 pessoas e devastou mais de 680 quilômetros do Rio Doce; em 2019, o rompimento repentino da barragem de minério de ferro em Brumadinho matou 272 pessoas.

Duas extensas barragens estão sendo planejadas para o Projeto Bloco 8, com capacidade de armazenamento para aproximadamente 930 milhões e 230 milhões de metros cúbicos, respectivamente. Além do local da extração, o sistema de logística do empreendimento contará com um duto subterrâneo de 482 km que se estenderá por 21 municípios, paisagens e ecossistemas complexos. 

O impacto da mineração sobre os recursos hídricos da região é ainda mais alarmante para a população. Para abastecer o Projeto Bloco 8, serão desviados anualmente 5.100 metros cúbicos de água do reservatório Irapé por um período de 20 anos. A empresa também planeja construir uma barragem ao lado do Rio Vacaria com vazão de 6,2 milhões de litros de água por hora. Tais planos, porém, não serão suficientes para abastecer o projeto, e a previsão é de construção de mais barragens. 

A SAM afirmou que irá dedicar 4.000 metros cúbicos de água por hora da futura barragem de Vacaria para o abastecimento da população, por intermédio do governo local, bem como realocar as famílias afetadas pela construção. A empresa também se comprometeu a construir uma nova barragem no Vale em substituição à barragem de Batalha, até então utilizada para abastecer as comunidades da região.

Mas essas promessas não convenceram as populações locais. “Disseram que a chegada da mineração seria boa, mas quando começamos a questionar percebemos que não seria para o bem da nossa comunidade. Falaram de geração de empregos e benefícios para a população, mas só fizeram promessas quando precisaram de nós." Valdeir afirma.

Empreendedores estrangeiros ambicionam os recursos da região, mas não se importam com o bem-estar das comunidades locais. Projetos de extração dessa magnitude tendem a deixar uma trilha de destruição por onde passam: água, terra, ar e até o direito à vida; nada é respeitado. São processos de devastação que se repetem, com o que os povos que os vivenciam se tornam imunes a novas garantias e promessas. As populações tradicionais sofrem com a chegada de novos projetos porque sabem das perdas e da destruição que estão por vir.

Eva cultiva alimentos em sua roça e considera a tradição da autossuficiência mais viável do que a vida na cidade.

Eva: "Deus abençoe, eu não tenho que gastar dinheiro com comida."

Eva, a esposa de Valdeir, fica calada até que a conversa nos leva à sua horta. Costuma-se dizer que nesta região semiárida a terra não é fértil, mas Eva discorda.

"Se você levar a sério, tudo cresce e vai muito bem; temos feijão, milho, abóbora, quiabo e assim por diante", diz Eva, acrescentando que se há algo que torna a safra ruim, "é que às vezes os pássaros vêm e bicam".

Eva diz que é porque estes animais não conseguem mais encontrar comida suficiente na mata.

"Graças a Deus não preciso comprar feijão há muito tempo." Não seria mais fácil ir ao supermercado para comprar alimentos? Eva achou a pergunta engraçada. “Não podemos e não queremos viver na cidade. Na cidade tudo é rápido, os salários são baixos, as ruas estão cheias de perigo, as crianças podem se envolver com o crime e tudo precisa ser comprado. Aqui, somos autossuficientes".

O geraizeiro Adão, do Vale das Cancelas, é especialista em ervas medicinais. Ele aprendeu sobre o uso de plantas medicinais com os mais velhos, e está preocupado com a destruição das nascentes de água e ervas nativas. 

Adão: "Não podemos abrir mão das nossas tradições".

Adão, 59, é especialista em plantas medicinais. Há alguns anos, quando foi picado por um inseto desconhecido e não conseguiu auxílio médico, Adão seguiu os conselhos de seus vizinhos e fez uso de certas ervas nativas para tratar o problema, sendo logo curado. Ele então passou a acreditar no poder dessas plantas medicinais e aos poucos foi coletando relatos e experiências de diferentes pessoas e aprendendo a preparar infusões. 

Certa vez, quando Adão pediu algumas dicas a um médico, este lhe disse: "Pergunte a seus avós; eles conhecem essas plantas." O Cerrado então contava com uma vegetação rica, e não era fácil identificar quais plantas eram venenosas, quais tinham propriedades medicinais e quais deveriam ser utilizadas com moderação; Adão se especializou.

Mas a savana deixou de ser um lugar que o geraizeiro pudesse explorar livremente. Depois da abertura do parque nacional, Adão não pôde mais sair à procura de ervas; o agronegócio e a extração ilegal de madeira secaram várias nascentes de água. Mais alarmante ainda para Adão é o impacto que a mineração pode vir a ter no ecossistema.

“Se a natureza for destruída, tudo vai acabar, as famílias tradicionais vão desaparecer e tudo se tornará uma memória do passado”.

Hailton, geraizeiro, visitou áreas de mineração em outras regiões, hoje inabitáveis, e está preocupado que a extração de minérios irá destruir o paraíso onde vive.

Hailton: "Eu nasci em um paraíso."

"Para falar a verdade, acho que nascemos em um paraíso", diz Hailton, 70," Tem água boa, terra boa, mata boa... É meu país das maravilhas. "

Hailton sabe do Projeto Bloco 8 e conhece muitas pessoas da região que estão se mudando em função dos planos de extração de minérios. Ele está apreensivo com o futuro dos que passaram a vida no território e as dificuldades que encontrarão ao partir. 

Hailton acredita que as famílias que vivem na região há gerações merecem ser mais bem indenizadas. Ainda assim, a situação é complicada, já que "muitos nem têm certidão de nascimento, então como é que vão provar a titularidade das terras aqui?"

"Eles estão apenas se aproveitando de nós, que somos pessoas simples e sem escolaridade."

Hailton desconfia das organizações estrangeiras e das empresas que vêm de fora. “Eles não podem fazer isso com a gente”, diz ele sobre suas visitas a uma área de extração de minério de ferro, onde presenciou a poluição das águas e os vales agora inabitáveis.

“Esta empresa estrangeira obviamente quer produzir mais riqueza e exportar recursos para seu próprio país”, afirma Hailton, “e aqui eles só vão deixando esses rejeitos e o câncer”.

Eliete está apreensiva com o futuro, contemplando se é possível que mineradoras estrangeiras convivam com a população local, bem como a extensão dos danos em potencial. 

Eliete: "Ninguém sabe o que vai acontecer."

Eliete, 56, que mora com o irmão Cipriano, 67, se opõe à construção de barragens em decorrência da mineração: “Depois que a água acabar, não volta mais. Já é difícil conseguir água no período de seca, sem falar que as melhores terras vão ser inundadas. ”

Eliete acredita que o que mais falta é um projeto coerente "apresentado pelo governo, que traga benefícios para a região e para as comunidades locais."

“Eles vão revirar a terra aqui e acabar com o abastecimento de água."

A escassez de chuva dos últimos anos diminuiu a produção de arroz. Com a crescente redução das áreas de pasto para o gado, os irmãos estão preocupados em como viver dos próprios recursos e têm saudades da vida que levavam quando criança. "Na época do nosso pai tava tudo bem, as vacas corriam soltas por todo lado e só apareciam na hora de ordenhar ou pegar sal; chovia muito e o que era plantado crescia."

"Meu pai saía com uma mochila de couro nas costas e voltava com ela cheia de frutas."

Eliete não tinha ideia da proveniência da mineradora. Quando ficou sabendo que a empresa era chinesa, Eliete disse: "Não sei se os estrangeiros vão se dar bem com a população local, se nossa convivência vai funcionar ou que tipo de dano a chegada deles vai trazer".

“Eles dizem que as comunidades aqui podem se beneficiar com isso, mas a maioria de nós não acredita porque sabemos que [a mineração] traz conflitos e uma destruição sem fim”.

A partir da barragem de Irapé, localizada a 50 quilômetros da mina, será construída uma adutora para fornecer 54 milhões de metros cúbicos
de água por ano, durante 20 anos, necessários para abastecer o projeto.

Casa de Farinha na comunidade São Francisco, Minas Gerais.

Criador de gado na comunidade São Francisco, Minas Gerais.

Cemitério na comunidade Diamantina, Minas Gerais.

Chapéu e cruz na casa de Eliete.

Geraizeiro Valdeir com sua esposa Eva.

(Este artigo é uma colaboração entre a Initium Media e a Comissão Pastoral da Terra)

 

Save
Cookies user preferences
We use cookies to ensure you to get the best experience on our website. If you decline the use of cookies, this website may not function as expected.
Accept all
Decline all
Read more
Analytics
Tools used to analyze the data to measure the effectiveness of a website and to understand how it works.
Google Analytics
Accept
Decline
Unknown
Unknown
Accept
Decline