Na segunda década do século XXI, o discurso sobre mudanças climáticas e a transição para uma energia dita como limpa, promovido por corporações e governos, esconde um aumento crescente e devastador da exploração de territórios. Isso ocorre tanto por meio de projetos minerários quanto de produção de energia e infraestrutura. Portanto, é falso afirmar que se trata de uma verdadeira transição para energia limpa. Na realidade, trata-se de mais mineração nos territórios, causando sérios danos ecológicos e sociais em vários países, especialmente no Sul Global.
Ainda, sob a fachada de progresso e desenvolvimento, as corporações e os governos promovem falsas promessas de um futuro melhor. No entanto, a exploração de novas fronteiras minerárias e de outros grandes projetos do capital é apenas mais um capítulo de uma longa história de promessas vazias e exploração contínua. Um relatório do Banco Mundial destaca que para alcançar uma grande capacidade de “energia renovável” exigirá um aumento drástico na extração minerária de materiais como o lítio, agravando a crise de sobre- extração e seus impactos negativos inerentes, como o desmatamento, destruição de solos, perda de biodiversidade, contaminações e danos aos recursos hídricos.
O colonialismo energético está por trás desses conflitos, perpetuando um modelo econômico extrativista que beneficia poucos em detrimento das populações locais e da destruição de muitos territórios que são decepados e incorporados na “máquina do lucro”. O capitalismo em crise busca se reconfigurar, agora com o mito da energia e produção verde.
No Vale do Jequitinhonha, o chamado colonialismo energético se manifesta pela desapropriação, fragmentação e transformação de terras e territórios através de megaprojetos de mineração. Esse modelo de exploração imposto à região é o mesmo que se espalha por toda Minas Gerais. Não existe mineração verde ou sustentável. A mineração consiste em arrancar o minério da terra, exportá-lo, às vezes processa-lo e deixar um rastro de destruição. Essa prática causa profundos impactos nas práticas e valores culturais, ecológicos e agrícolas, perpetuando um modelo econômico extrativista que beneficia poucos no Norte Global, em detrimento das populações locais.
Essa é uma roupagem nova para um processo já visto muitas vezes no Vale do Jequitinhonha. Ciclos de exploração econômica têm se repetido desde o século XVIII, com as riquezas sendo constantemente extraídas em benefício de poucos. Desde a mineração de pedras preciosas, a criação de grandes fazendas e monocultivos de eucalipto e a produção de energia com a barragem de Irapé. Na atual busca pela extração minerária do lítio vemos a usurpação de terras sob os velhos pretextos de "desenvolvimento" e "progresso". Desta forma, os habitantes do Vale têm sido sistematicamente prejudicados e marginalizados.
A Comissão Episcopal Regional para Ecologia Integral e Mineração do Regional Leste 2 da CNBB e as instituições abaixo assinadas denunciam veementemente essas práticas predatórias e reitera que as promessas de desenvolvimento e riqueza para a região não mais nos convencem. As comunidades tradicionais e os povos do Vale do Jequitinhonha continuarão a resistir e lutar pela justiça e pelo reconhecimento de seus direitos.
Belo Horizonte, 04 julho 2024
Comissão Episcopal Regional para Ecologia Integral e Mineração do Regional Leste 2 da CNBB Rede Igrejas e Mineração Minas Gerais
Comissão Pastoral da Terra Caritas Brasileira
Conselho Indigenista Missionário Conselho Pastoral dos Pescadores
Comissão de Meio Ambiente da Província Eclesiástica de Mariana Serviço Interfraciscano de Justiça Paz e Ecologia
Fórum Permanente em Defesa da Bacia do Rio Doce Instituto Padre Nelito Dornelas
Ação Franciscana de Ecologia e Solidariedade
Por Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional),
com informações das regionais da CPT Rondônia e Acre
Legenda: Os montes de bancos de areia se formam no Rio Madeira, dificultando a navegação e a pesca.
Crédito: Registro da comunidade Terra Firme - Porto Velho/RO
Em meio às consequências da crise climática que afetaram mais fortemente a Amazônia em 2023, o ano de 2024 parece trazer perspectivas ainda mais difíceis para a vida das populações tradicionais e ribeirinhas. É o que acontece com as comunidades junto aos rios Madeira (em Rondônia) e Acre (no estado de mesmo nome), que estão percebendo a diminuição rápida dos níveis nos últimos meses, principalmente com o início do “verão amazônico”, como é chamado o período de escassez de chuvas e aumento nas temperaturas de junho a agosto.
O Rio Madeira, que teve recorde de cheia histórica em 30 de março, alcançando 19,74 metros de inundação (quase três metros acima da cota), chegou em junho a níveis preocupantes para especialistas e principalmente as famílias. Segundo o Boletim Hídrico do Governo do Estado de Rondônia, o nível caiu dos 4,55 metros no dia 17 para 4,09 metros na segunda-feira passada (24), menos da metade da medição registrada em 2023, quando o rio estava com 8,37 metros de profundidade. Se seguir essa tendência, o rio pode atingir a cota de escassez hídrica, abaixo de 1,70 metro.
A agricultora Maria de Fátima, presidente da associação da comunidade Terra Firme, em Porto Velho/RO, compartilha do sofrimento de 30 famílias residentes na localidade, que além da falta de água, vivenciam o aumento do calor. “A situação está alarmante, porque as comunidades dependem do rio pra se deslocar, se alimentar, pra tudo. E também não temos condição nenhuma de consumir a água nem os peixes do Rio Madeira, por causa da poluição do mercúrio dos garimpos.”
A solução da prefeitura para o acesso à água tem sido a perfuração de poços artesianos, uma medida que também encontra dificuldades para se concretizar. Depois de 16 anos de reivindicação e espera da população, os primeiros poços estão começando a ser perfurados em Terra Firme e também nas comunidades vizinhas de Papagaios e Santa Catarina, além dos distritos de Calama e Demarcação.
Na outra margem do rio Madeira, em Humaitá (AM), as comunidades ribeirinhas também têm sofrido com a estiagem. Sem contar com políticas públicas de fomento a produção, de direitos básicos, como saúde, educação, seguro para a pesca, além da falta de regularização do território, elas veem como única saída a extração do garimpo, o que traz impactos ambientais tanto em seu funcionamento quanto nas destruições das dragas realizadas pelos órgãos federais.
“O rio acaba morrendo do mesmo jeito, porque as explosões destróem tudo e também contaminam a água com os produtos químicos. Tem pessoas até com a saúde mental afetada, porque estão sem alternativa para sobreviver”, afirmam representantes das comunidades.
Estiagem deixa todos os municípios do Acre em emergência ambiental
Na mesma região, o estado do Acre sofre as consequências da crise climática apenas alguns meses após a cheia recorde que deixou milhares de famílias desabrigadas ou desalojadas, superando as expectativas e a estrutura mesmo daquelas que já conviviam com as enchentes. No sábado (29), o Rio Acre chegou a registrar 1,78 metro, um sinal dos extremos dos impactos das mudanças.
No último dia 11 de junho, o governo do Estado decretou situação de emergência ambiental em todos os 22 municípios do estado até 31 de dezembro. A Secretaria do Meio Ambiente (Sema) ficou com o encargo da coordenação e articulação interinstitucional dos órgãos e entidades estaduais, para a definição de estratégias de prevenção e de combate ao desmatamento e incêndios. Contudo, as comunidades dependem de outras ações concretas contra a poluição, que também tem atingido os cursos de água.
Manter um trabalhador em situação análoga à escravidão custa apenas R$ 4.115,89 a empregadores
Por Bianca Pyl e Marcelo Soares | The Intercept Brasil
Cadeia produtiva da cana de açúcar. Foto Tatiana Cardeal/Divulgação Papel Social. © Tatiana Cardeal
Em 2023, o Ministério do Trabalho e Emprego encontrou 3.190 pessoas em condições análogas à escravidão em todos os estados do país. Os empregadores flagrados pagaram R$ 12,8 milhões aos trabalhadores. Ao todo, no ano, foram 707 operações realizadas para coibir esse crime, sendo que em 345 houve flagrante de trabalho escravo.
Esses dados foram anunciados como um recorde do estado – e são mesmo. Desde 2009, o Brasil não resgatava tantas pessoas submetidas à escravidão contemporânea. Mas, por trás dos números superlativos, há um resultado degradante: ainda sai barato escravizar no Brasil.
No ano passado, os empregadores flagrados pagaram uma média de R$ 4.115,89 por pessoa escravizada em verbas rescisórias. Isso equivale a pouco mais de três salários mínimos.
Um valor muito baixo para quem cometeu uma violação de direitos humanos, um crime que vai muito além da esfera trabalhista – e sequer dá conta do que o trabalhador perdeu durante o tempo de serviço.
Trabalhador da fruticultura que manuseia agrotóxicos e fertilizantes exibe feridas pelo corpo. Foto: Tatiana Cardeal/Divulgação Papel Social.
Desde 1995, quando o governo brasileiro criou grupos móveis de fiscalização de combate ao trabalho escravo, 63.516 trabalhadores foram retirados de condições análogas à escravidão. E os empregadores pagaram um total de R$ 146.196.587,83 em verbas rescisórias no momento da fiscalização, de acordo com os dados do Ministério do Trabalho e Emprego.
Os valores das rescisões estão disponíveis no site do MTE desde 2000, quando o salário mínimo valia R$ 151. As quantias dos anos anteriores não estão disponíveis.
Atualizando os dados de cada ano pela inflação, os empregadores teriam pago o equivalente a R$ 321 milhões desde o início. Isso dá uma média de R$ 5.736,82 – 4,3 salários mínimos – por trabalhador no período.
Além das verbas rescisórias, os trabalhadores resgatados têm direito a três parcelas de seguro-desemprego, pagos pelo Ministério do Trabalho, no valor de um salário mínimo.
“Por que esses trabalhadores têm que ter como base dos seus direitos um salário mínimo?”, questiona Gildásio Silva Meireles. Ele foi submetido a condições degradantes de trabalho em uma fazenda no Maranhão, em 2005.
Trabalhador da cadeia produtiva do café. Foto: Tatiana Cardeal/Divulgação Papel Social.
Hoje, trabalha com vítimas de trabalho escravo no Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia, no Maranhão, e não vê a situação melhorar. Muitos trabalhadores acabam sendo resgatados pela fiscalização mais de uma vez porque a situação após o flagrante não muda.
“O que o trabalhador ganha não é o suficiente para sustentar a família durante muito tempo e, como geralmente ele não tem uma profissão [fixa], ele se submete novamente ao risco de ser escravizado”, explica.
Os empregadores, além disso, não são penalizados e voltam a cometer o mesmo crime. “Eles pagam uma multa pequena, ficam com o nome na justiça durante muitos anos esperando o julgamento, enquanto isso não acontece e ele continua agindo da mesma maneira”, relata Meireles.
Água suja com fezes de animais e alimentação escassa
A agropecuária é a atividade econômica com mais casos de resgate de trabalhadores –, com 27% do total, segundo os dados do MTE. Era essa a atividade da propriedade em que Meireles foi resgatado.
Meireles contou ao Intercept que, na fazenda, a água que ele e seus colegas bebiam era a mesma que o gado, os porcos e outros animais consumiam. “É aquela água de igarapé, e desce todas as fezes e sujeira dos animais. O trabalhador tinha que coar a água para beber e para cozinhar”.
Pela manhã, era servido um café puro e, às vezes, com farinha de puba, extraída da mandioca. No almoço era só arroz com feijão. “Se o trabalhador tivesse sorte, ele achava alguma caça no meio do mato e fazia o preparo para se alimentar”, lembra.
Meireles prefere não revelar o nome da propriedade e do empregador que o submeteu a condições análogas à escravidão por medo de represálias. Ele e outros empregados faziam a limpeza manual do pasto, o chamado “roço de juquira”.
Trabalhadores da cadeia produtiva do gesso. Foto: Vitor Shimomura/ Divulgação Papel Social.
“Era eu e mais 15 pessoas. Fiquei cinco meses trabalhando e resolvi denunciar a situação. Lá tinha pessoas que estavam há dois, três e até cinco anos, e não conseguiam sair”, relata.
Para escapar da fazenda e fazer a denúncia, Meireles se articulou com alguns trabalhadores e conseguiu levantar dinheiro para fugir, em um momento de distração na fazenda. Percorreu 230 km do município de Santa Luzia, onde ficava a propriedade, até o Centro de Defesa dos Direitos Humanos em Açailândia. Chegando lá, esperou até que um grupo móvel de fiscalização do MTE aparecesse.
“Só que passaram-se 30 dias e o grupo móvel não apareceu e eu fiquei preocupado com a situação dos companheiros que tinham ficado na fazenda”, conta. Então, decidiu voltar. “Eu inventei que tinha ido para lá encontrar uma moça e fiquei na casa dela durante 30 dias. Eu fui muito pressionado e ameaçado”.
Mais 30 dias se passaram e a fiscalização não apareceu, então Meireles decidiu fugir novamente para reforçar a denúncia. A fiscalização ainda demorou mais três meses para ir até a fazenda e resgatar o grupo de trabalhadores.
No final das contas, o fazendeiro não foi preso e os trabalhadores receberam só as verbas rescisórias. “Eu entrei com um processo por danos morais em 2005 que só saiu no ano passado, recebi um valor baixo, mas aceitei pela precisão que estava passando no momento”, lamenta. Os outros trabalhadores do grupo não entraram na Justiça Trabalhista.
Após a ação, Meireles decidiu trabalhar no Centro de Direitos Humanos que o ajudou. “Eu decidi lutar com todas as minhas forças para combater o trabalho escravo. Hoje em dia eu faço treinamentos, formações com os trabalhadores. Eu também tenho acompanhado alguns trabalhadores que foram resgatados”.
Vale reforçar que trabalho escravo não é uma mera infração trabalhista, como a bancada ruralista e o ex-presidente Jair Bolsonaro costumam defender.
O crime está previsto no art. 149 do Código Penal e define trabalho análogo ao escravo como aquele em que as pessoas são submetidas a jornadas exaustivas, a trabalhos forçados, condições degradantes e são impedidas de deixar o local de trabalho por conta de dívida contraída com empregador ou por ameaça e coerção.
A lei prevê pena de reclusão por dois a oito anos e multa, além da pena correspondente por violência. Dificilmente, porém, são aplicadas penas mais duras do que a cobrança de verbas rescisórias.
Por que as verbas rescisórias são baixas?
Conversamos com Lucas Reis, auditor fiscal do trabalho que atua nas fiscalizações de combate ao trabalho escravo, para entender por que esses valores pagos aos trabalhadores são tão baixos.
“As verbas rescisórias são todos os direitos que o trabalhador teria se tivesse sido contratado regularmente desde o início do trabalho”, ele explica. Isto é, salário de acordo com piso da categoria, décimo-terceiro, férias, horas extras. Esse valor é calculado pelos auditores fiscais do trabalho no momento do resgate.
“O valor acaba sendo baixo porque, infelizmente, os direitos dos trabalhadores no geral são poucos. Eu defendo que os direitos deveriam ser ampliados, principalmente, em caso de resgate de trabalho escravo”, opina o auditor.
Trabalhadores da reciclagem. Foto: Giuliano Bianco/ Diuvlgação Papel Social.
A fiscalização do Trabalho também aplica multas referentes aos autos de infração por cada descumprimento da legislação.
Mas o valor é irrisório. No caso de flagrante de trabalho infantil, por exemplo, a multa vai de R$ 416,18 por “menor” até o máximo de R$ 2.080,90. Em 2023, foram 2.564 crianças e adolescentes retirados do trabalho infantil. Questionamos o MTE quanto foi pago de rescisões para cada uma. O órgão afirmou que “não possui banco de dados com informações referentes a valores totais pagos em verbas rescisórias”.
Uma verba indenizatória pode ser paga via dano moral individual proposto pelo Ministério Público do Trabalho, seja por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta ou via ação civil pública. Porém, isso não acontece em todos os casos e os valores variam muito. Cada procurador analisa de acordo com a gravidade da situação encontrada pela fiscalização.
De acordo com a assessoria de comunicação do Ministério Público do Trabalho, o MPT, em 254 fiscalizações realizadas com a participação do órgão em 2023, foram arrecadados R$ 14,31 milhões em danos morais coletivos e R$ 8,7 milhões em danos morais individuais. O MPT não participa de todas as ações de fiscalização do Ministério do Trabalho, por isso os números são menores.
Não tivemos acesso à quantidade de trabalhadores resgatados nessas operações para saber qual foi a média que cada um recebeu por dano moral.
Por equipe CPT Tucuruí/PA
Edição: Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
Imagens: Sirlei Carneiro/CPT
Uma verdadeira vitória para 47 famílias residentes no Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) João Canuto, no município de Tucuruí, no sudeste do Pará. Na última terça-feira (25), foi publicada a Portaria nº 543, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), criando o assentamento a partir da destinação da área de 2.400 hectares, para as famílias viverem e cultivarem com segurança, respeitando a área de preservação ambiental.
Uma das lideranças do assentamento, o agricultor Raimundo Valdemir, afirma que as famílias estão felizes, com o direito de acesso a politicas públicas e de melhoria de vida.
“Essa é uma terra fértil e muito próspera. Eu sou uma das peças pequenininhas que ajudou e deu sequência ao trabalho dos primeiros que começaram. Muitos já não estão mais conosco, mas ficou o legado, ficou a semente plantada, que agora está germinando bons frutos. É um imenso prazer poder falar um pouco da nossa história, e dizer que a luta que começou em 2002 se concretiza aqui, depois de 22 anos de espera, paciência e qualificação. Muitas pessoas passaram aqui e contribuíram pra que acontecesse esta graciosa vitória, tão esperada, a gente conseguir hoje dizer que está criado o nosso tão sonhado projeto”, afirma seu Raimundo.
O agricultor acrescentou sua gratidão ao poder público, Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR), universidades como a Unifespa, IFPA, UEPA, a Federação de Trabalhadores e Trabalhadoras (Fetagri), Contag e muitas outras entidades parceiras. “Essas parceiras estão diariamente conosco, contribuindo com a nossa preparação pra se manter dentro da área de preservação ambiental”, acrescentou.
A história do assentamento começou em 2002, quando um grupo de aproximadamente 60 famílias de trabalhadores rurais sem-terra ocuparam a antiga área da Fazenda Arumathewa Agropecuária Bom Jesus e Palmares, sendo terra pública federal inserida na Área de Proteção Ambiental do Reservatório de Tucuruí (APA). Após diversas situações de conflitos com o pretenso proprietário da localidade, as famílias sofreram despejo e uma parte foi assentada pelo INCRA no Assentamento Ararandeua, no município de Jacundá/PA. As demais continuaram resistindo, ocupando, produzindo e preservando as áreas de pastagem e de mata, fortalecidos através da criação da Associação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais.
Presidente da associação, o trabalhador João Rodrigues de Souza também demonstrou sua alegria: “Eu quero dizer que o que eu acho mais lindo no mundo foi a criação do nosso assentamento João Canuto, e a felicidade dessas famílias que estão dentro dessa área é imensa, de cada companheiro que lutou esse tempo todinho pra nós hoje estar com a portaria do nosso assentamento baixada até no Diário Oficial. Minha palavra é que a gente seja feliz, em primeiro lugar dando glória a Deus, e em segundo lugar agradecemos a CPT, pela grande ajuda que ela nos deu, toda a equipe”, comemorou.
“As famílias do tão sonhado PDS João Canuto celebram uma grande vitória. São 22 anos de espera, e graças a Deus, hoje há muitos motivos a se comemorar, pois graças ao protagonismo e persistência das lideranças, homens e mulheres que lutaram, buscaram, pressionaram as instâncias do governo até a vitória. Ressalto o grande papel de liderança do Sr Raimundo nessa conquista!”, conclui Sirlei Carneiro, agente da CPT Tucuruí.
Da Coluna de Guilherme Amado
Edição: Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional) e equipe CPT Itaituba/PA
Indígenas de diversos povos protestam contra o projeto da Ferrogrão (Foto: Raissa Azeredo/Arquivo pessoal/Repórter Brasil)
Mais de 20 entidades representantes de povos indígenas, agricultores, movimentos sociais e comunidades tradicionais da região do Tapajós e do Xingu, elaboraram uma Carta Aberta ao diretor-presidente da empresa Estação da Luz Participações (EDLP), empresa responsável pelo projeto da Ferrogrão com o apoio de multinacionais do agronegócio como a ADM, Amaggi, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus.
A ferrovia, com dimensão aproximada de 933 quilômetros, planeja ligar as cidades de Sinop (MT) e Miritituba (PA), transportando soja, farelo de soja e milho, a partir do porto no Rio Tapajós, para a China, Europa e Oriente Médio. Em seu trajeto, os vagões pretendem cortar com os trilhos de ferro Unidades de Conservação e 16 Terras Indígenas, incluindo algumas ainda não demarcadas, além de assentamentos e inúmeras propriedades de agricultores e agricultoras familiares.
Tomando forma em 2017, ainda o governo de Michel Temer, o projeto da Ferrogrão atravessou o mandato de Jair Bolsonaro e foi incluído no Programa de Aceleração do crescimento (PAC) do governo do presidente Lula, como obra para realização de estudos. As comunidades afirmam que não foram ouvidas sobre o empreendimento, e que, antes mesmo da construção, a obra já intensificou casos de grilagem, invasões, desmatamento, destruição e poluição de igarapés e ameaças contra os povos e comunidades, agravando os impactos que já existem com a construção da rodovia BR-163.
A falta de coerência apontada pelas entidades populares é de que, além da chefia da EDLP, Guilherme Quintella é vice-presidente do conselho diretor do Instituto Terra, organização fundada pelo fotógrafo Sebastião Salgado, que junto com a esposa, Lélia Deluiz Wanick Salgado, atuam como ativistas ambientais. A posição de destaque do executivo nesta organização ambientalista iria na contramão dos próprios valores do instituto.
Leia a carta na íntegra:
Prezado Guilherme Quintella,
Escrevemos essa carta juntos, povos indígenas, agricultores e agricultoras, movimentos sociais e comunidades tradicionais da região do Tapajós e do Xingu, depois que você procurou algumas de nossas lideranças. Como não sentamos sozinhos para conversar com empresas e seus representantes, te convidamos para uma reunião durante o Acampamento Terra Livre, mas, depois de aceitar, você disse não poder participar. Então agora nós te escrevemos para que não tenha dúvidas da nossa posição e esperando que você tome a decisão certa: abandone e denuncie o projeto da Ferrogrão e pare de ajudar na destruição dos nossos territórios e do futuro do planeta.
É isso mesmo. Na contramão da missão e valores do próprio Instituto Terra, você e sua empresa já estão promovendo essa destruição antes mesmo de uma decisão sobre a Ferrogrão ter sido tomada: só a possibilidade dessa ferrovia da morte ser construída já faz com que exista ainda mais pressão sobre nós e sobre os nossos territórios. É muita grilagem, é muita especulação, é muita invasão, é muita ameaça, é muito desmatamento, é muita poluição e destruição dos nossos rios, dos igarapés… E tudo isso em cima de um monte de problemas que a gente já enfrenta há muitos anos!
Muitos de nós já sofremos muito com a construção da BR 163 e com o complexo portuário já instalado na região do Tapajós, que não trouxe benefícios e sim muitas violações de direitos. O povo Panará quase acabou, e muitos morreram. Desde então, as plantações de soja e milho só aumentaram e vão aumentar ainda mais, se você e sua empresa continuarem apoiando esse projeto da Ferrogrão. Vão derrubar mais floresta para plantar mais soja e milho, vão jogar veneno, e o veneno vai descer e vai envenenar mais os peixes. Vão destruir mais o rio para fazer hidrovias para as barcaças, e vão fazer ainda mais portos que não deixam a gente pescar.
E tudo isso para quê? Para dar mais dinheiro para empresas estrangeiras gigantescas? Para facilitar o lucro da Cargill, ADM, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi, enquanto a gente não tem terras demarcadas, não tem direitos respeitados? Nós nem fomos consultados! Você e todos os empresários, políticos e financiadores têm a obrigação de ouvir a nossa voz e respeitar os protocolos de consulta e nosso direito a veto. Deveriam fazer isso pelo bem de vocês, pois a Ferrogrão ameaça todas as gerações que ainda vão vir. O futuro de todos vai ser destruído se a destruição da Amazônia e do Cerrado continuar.
O fato de um trem soltar menos fumaça do que uma frota de caminhões não significa que a Ferrogrão seja boa. Se tivessem feito estudos direito e ouvido os povos e as comunidades afetadas, vocês talvez soubessem disso. Pois saibam: nós não vamos aceitar que a soja e o milho engulam ainda mais os nossos territórios. Não vamos permitir que a Ferrogrão faça ainda mais mal para a natureza para dar mais dinheiro para empresas estrangeiras. Nós já sofremos demais e isso tem que parar. Você e sua empresa podem escolher estar do lado certo da história e em linha com os princípios do Instituto Terra do qual você é vice-presidente do conselho diretor. Pense em nós, e pense nos seus filhos, nos seus netos e na saúde do planeta.
Assinam esta Carta:
Itaituba, 24 de junho de 2024.
Por Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
Foto: Júlia Barbosa
“Presença, Resistência e Profecia
Na certeza de um novo dia
Romper cercas, tecer teias
Vai, CPT, com o povo em Romaria…”
(Banda Filhos da Mãe Terra)
Entre os dias 19 e 22 de junho, a Comissão Pastoral da Terra realizou a sua tradicional Semana Nacional de Formação, reunindo mais de uma centena de agentes no Centro Pastoral Dom Fernando, em Goiânia (GO), local em que a CPT foi criada, há exatos 49 anos. O momento foi de imersão nas pautas da pastoral, olhares sobre os desafios da realidade e um aquecimento dos corações e das forças para o início da comemoração dos 50 anos da CPT e a realização do V Congresso Nacional, a ser celebrado em julho de 2025, em São Luís (MA), sob o tema/lema “Presença, Resistência e Profecia – Romper Cercas, Tecer Teias: A Terra a Deus pertence.”
Presença junto aos povos: Os Rios da Vida da CPT
“Moço, Vamos subir o Rio, vamos subir o Rio, vamos subir o Rio…”
A programação começou com a mística da “Construção dos Rios da Vida da CPT”, organizada pelas muitas mãos de agentes de cada grande região, que trouxeram diversos símbolos da memória da caminhada e os mártires da terra. Confira detalhes dos Rios da Vida na Carta do Encontro Nacional de Formação.
Diversas experiências de presença, resistência e profecia vividas nestes 49 anos foram compartilhadas e celebradas, como a Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais (Grande Região Norte), a resistência das comunidades ribeirinhas (Noroeste), a luta e concretização da Reforma Agrária (Centro-Oeste), o enfrentamento aos grandes projetos de desenvolvimento e transição energética (Nordeste), a luta quilombola no Sudeste e a resistência da agroecologia no Sul.
“O encontro todo está sendo um momento de muita força e energia para a gente. Também fico muito feliz por encontrar gente jovem, que está continuando na luta e caminhando junto com o povo do campo,” afirmou Neide Martins, agente da CPT Ceará.
A agente Neide Martins (no centro), representando a CPT Regional Ceará. Foto: Heloísa Sousa
“Onde a CPT está? No lugar em que os pobres do campo sentem sede, junto das pessoas sem rosto, escravizadas e consideradas indigentes ‘pelo poder do latifúndio e ambição do capital’, a CPT bebe na fonte do Evangelho de Jesus de Nazaré. Essa é a espiritualidade da CPT – a espiritualidade da cruz, do martírio, do Jesus que teve sede, junto com as pessoas crucificadas na história. A CPT está lá, não para ficar na cruz, mas para testemunhar, junto com os povos e comunidades que ‘as forças da morte não vencem as forças da vida’”, destacou Muria Carrijo, documentalista do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (Cedoc-CPT).
Foto: Júlia Barbosa
A Resistência na luta de classes
“Traga a bandeira de luta, deixa a bandeira passar
Essa é a nossa conduta, vamos unir pra mudar…”
O segundo dia da formação foi dedicado à análise da conjuntura em que se encontra a CPT, um olhar político de reflexão, estudo e debate. Facilitaram o momento o prof. Bruno Lima Rocha, cientista político e pesquisador na Universidade Federal Fluminense (UFF), e Michela Calaça, do Movimento de Mulheres Camponesas e atualmente no Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA).
A reflexão foi principalmente para um contexto de Brasil entre dois blocos de poder (EUA e China), mas que, mesmo com a mudança para um governo de orientação popular, continua investindo muito mais na produção do agronegócio direcionada para as commodities, com exportação de grãos para a produção de ração para animais, beneficiando o mercado financeiro, enquanto o país está no mapa da fome.
Foto: Carlos Henrique Silva
“Internamente, os desafios são da consolidação de uma direita militante diante de um governo em tensão constante, que mesmo cedendo e beneficiando o agronegócio, precisa sempre negociar com as bancadas do agronegócio, das armas e religiosa conservadora – as bancadas do boi, da bala e dos fariseus”, afirmou o prof. Bruno.
Tânia Maria, agente pastoral da CPT em João Pessoa (PB), também participou de um momento de análise junto com Isidoro Revers (Galego), ex-coordenador nacional da CPT. “O que a gente pode fazer para que a igreja se comprometa, uma vez que ela está cada vez mais apática à situação do campo? Há expressões de padres, até, que dizem que ‘não devemos lutar pela terra, devemos lutar pelo céu’, uma linguagem que está se dando dentro das comunidades. A essência da Pastoral da Terra é levar a esperança evangélica para o povo camponês, a mulher e o homem camponeses”, afirmou Tânia.
Foto: Everton Antunes
A Profecia: denúncia e anúncio a partir do olhar teológico
“No Egito, antigamente, no meio da escravidão,
Deus libertou o seu povo, hoje ele passa de novo
Gritando a libertação!”
O último dia de formação contou com uma análise teológica e profética da caminhada da CPT, iniciando com apresentação da análise feita pelo educador popular Ranulfo Peloso, na Semana de Formação anterior. O texto traz a história da CPT nesses 49 anos, seu serviço prestado aos povos, seus desafios para “nascer de novo” como entidade relevante na luta junto ao povo de Deus e no cumprimento de sua missão. O momento também contou com a facilitação do assessor Jadir Morais e da pastora e assessora Nancy Cardoso.
Foto: Heloísa Sousa
Em sua análise, Nancy destacou a forte presença das mulheres e juventudes no espaço de formação, e as mudanças nesses 49 anos de CPT. “Pedro Casaldáliga, citando santo Agostinho, diz: ‘Nós somos o tempo.’ Sejamos o jubileu com toda a nossa vida, um solene ciclo de festividades, celebrando esse ano que temos em comum. Os tempos mudaram, muita coisa mudou, mas nós, irmãos e irmãs, não perdemos o paradigma. Nos atualizamos, mas não perdemos o prumo do que é a CPT. Vamos nos fortalecer junto com os sindicatos, partidos, movimentos, escolas.”
De acordo com Jadir Morais, o desafio para os/as agentes é ouvir e estar com o povo, dialogar com as comunidades, em um trabalho consolidado. “Os próximos 50 anos, como vai ser daqui pra a frente? Nós temos que estar permanentemente reforçando aquilo que é nossa base, aquilo que nos constituiu. Pra a gente saber qual o lado certo, vamos precisar de muita lucidez, clareza, estudo e leitura. Eu não consigo pensar em um(a) agente da CPT que não lê, não estuda, e vou ainda mais longe: precisa ser um pesquisador e pesquisadora”.
Foto: Everton Antunes
A tarde terminou com a apresentação das rodas de conversas formadas por grandes regiões, que refletiram sobre os desafios e rumos aos próximos 50 anos, apontando caminhos que sejam protagonizados e também construídos pelas vozes das mulheres, juventudes e pessoas LGBT+ presentes no campo, mostrando que, fora da luta e da organização popular, não há saída para essa conjuntura.
“Precisamos debater de forma ampla, unindo este contexto com as questões de gênero e raça, valorizando, estimulando e potencializando ainda mais a sabedoria e o fazer dos povos e das comunidades”, afirmou Larissa Rodrigues, agente que integra a coordenação eleita recentemente na CPT Rondônia.
Consagração dos Tambores e envio aos regionais
Foto: Heloísa Sousa
“Eu tava no alto da floresta
Foi quando o tambor me chamou
Ê não bota fumaça, vovó, ê não bota fumaça, vovó
Eu acordei no batuque do tambor…”
Símbolo da cultura e religiosidade maranhense, o tambor também foi escolhido como instrumento para guiar a preparação do V Congresso Nacional e dos 50 anos da CPT. Para celebrar esse início, um ritual no final da tarde marcou a consagração e entrega de 21 pequenos tambores às equipes regionais e à Coordenação Nacional.
Fotos: Heloísa Sousa
Os instrumentos foram produzidos pelo grupo coletivo Coró de Pau, de Goiânia (GO), que desenvolve há mais de 20 anos trabalhos com percussão musical, blocos de percussão de rua, bandas, produções de instrumentos de percussão, entre outras atividades.
“No Maranhão, a gente costuma dizer que o tambor é feito a machado, afinado a fogo e tocado a coice. É algo muito forte e intenso, que remete à ancestralidade e à resistência do povo”, afirmou Raniere Roseira, agente da CPT Maranhão.
Foto: Heloísa Sousa
A Semana de Formação encerrou com energia para uma caminhada rumo aos 50 anos de comprometimento com as causas populares, representada pelo compartilhamento de anéis de tucum e a inspiração da voz de Dom Pedro Casaldáliga.
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