Durante quatro dias de encontro, programação trouxe os novos desafios socioambientais e agrários enfrentados pelas comunidades, além dos desafios da CPT rumo ao seu meio século
Por Heloisa Sousa | CPT Nacional
Foto: Heloisa Sousa
Entre os dias 17 e 20 de outubro, agentes, coordenações de regionais e assessores da Comissão Pastoral da Terra (CPT) se reuniram em Goiânia (GO), para a Semana Nacional de Formação. Este ano, com o tema “Questão agrária e os desafios nos 50 anos da CPT”, os quatro dias de partilha trouxeram momentos de diálogos e reflexão sobre a igreja do Deus dos pobres, sua reaproximação e caminhada juntos às comunidades, aos povos do campo, das águas e das florestas na construção de um modelo de sociedade mais justo e fraterno.
Após a mística que deu início ao encontro, trazendo de maneira simbólica as águas dos rios das regiões onde a CPT está presente, a vereadora Silvia Ferraro (Psol - SP) e o Pe. Manoel Godoy facilitaram o debate sobre a análise de conjuntura e como o Brasil se encontra no atual contexto mundial. O momento destacou a importância de organizar o enfrentamento ao capitalismo e às crises trazidas por esse sistema, além da defesa de um novo projeto de vida, respeitando a natureza e os povos, que têm a espiritualidade libertadora encarnada em suas resistências.
O economista Guilherme Delgado, Ayala Ferreira, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Julciane Anzilago, do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), abriram o painel “Questão agrária hoje e os mitos do agronegócio”. A mesa destrinchou o modelo histórico de concentração de terras no país, desde a colonização, até os dias de hoje. As relações com a reforma agrária como projeto popular de enfrentamento e ruptura definitiva a esse sistema também foram destacadas.
“Não basta, para nós, conquistar território para reproduzir o modelo do agronegócio. O agronegócio não só matou, mas também convenceu de que os valores da meritocracia, da concorrência e do individualismo são válidos para a sociedade, e isso se reverberou nas nossas comunidades e assentamentos. Nós sobrevivemos a uma tentativa de padronização e aniquilamento”, completou Ayala.
Para Julcilane, a organização popular e formação de consciência política dos trabalhadores é o caminho na construção de uma nova sociedade e com garantia de soberania alimentar para todos. “Há sinais de que a resistência ainda está organizada, seguimos esperançando esse projeto popular”.
Somos a terra, somos a vida
A renovação da espiritualidade por meio de místicas, músicas e resgate da memória das irmãs, irmãos de caminhada e comunidades em luta, delinearam a semana de formação, trazidas por representantes de diversas regiões e comunidades do país. A dimensão do sagrado nos territórios foi apontado também por Anacleta Pires da Silva, do Quilombo Santa Rosa dos Pretos (Itapecuru-Mirim/MA), que denunciou as violências do Estado no território onde vive. “Quando alguém fala de vender a terra, eu vejo o meu corpo ser negociado. Eu sou a terra. Terra é para cuidar. A terra é a nossa vida e é preciso ter respeito por ela".
O avanço dos empreendimentos de energia eólica, que têm impactado a vida dos agricultores, especialmente no Nordeste do país, fez parte da fala de Roselma de Melo, da Comunidade Sobradinho (Caetés/PE). “A gente sabe que a eólica é só a porta de entrada, que depois vem a energia solar e vai ser às nossas custas, mais uma vez. E é muito difícil pra quem está numa comunidade resistindo, porque a gente escuta do prefeito que a gente está sendo beneficiado daquilo, mas isso não existe”.
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Em seguida, dando continuidade à discussão sobre a mercantilização dos bens naturais e tentativa de desterritorialização das comunidades, a pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Camila Moreno, e a assessora nacional da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), Julianna Malerba, falaram sobre o mercado de carbono, o discurso do controle climático e as disputas territoriais no Brasil.
A realidade do mundo do carbono é muito distante das compreensões e vivências de ecologia integral, comunidades e espiritualidade, destacou Camila. “A descarbonização é uma visão totalmente centrada no lucro da compra do direito de poluir, como sempre foi o capitalismo. Nas Nações Unidas, cada vez mais as empresas estão ocupando espaços de assento equivalentes aos governos dos países”.
Segundo Julianna, as questões agrárias e de posse são a outra face da discussão ambiental, uma forma de disputa das terras públicas brasileiras está se dando por meio do mercado de carbono.
Caminhos da CPT
A história e a missão pastoral da CPT, sua atuação macro-ecumênica, a terra como fonte de mística e a formação dos agentes como um processo contínuo e coletivo foi tema de debate trazido pelo educador popular do Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae (Cepis), Ranulfo Peloso. Para ele, na caminhada ao meio século de existência, é importante que a Pastoral da Terra “conheça os terrenos para semear em terra boa”, entendendo os contextos sociais da atualidade.
“Um dos objetivos da formação, em uma entidade como a CPT, é preparar agentes que sejam apóstolos e missionários de uma causa. Ser agente significa mobilizar pessoas e comunidades que possam andar com seus próprios pés, por isso se diz ‘trabalho de base’. O objetivo deste trabalho deve ser de estar junto com o povo, comunicando com as suas lutas”, explicou Ranulfo.
Dando continuidade ao processo de pensar os 50 anos da CPT, no último dia de encontro, o grupo iniciou o mapeamento das regionais e equipes da pastoral, orientadas pelas pesquisadoras Carla Craice da Silva e Francielly da Fonseca Costa, do grupo Geografar (UFBA). O processo, que irá ouvir agentes de todas as regionais para a composição da Cartografia Social da CPT, auxiliará na compreensão das particularidades e diversidade da CPT pelo Brasil e sua unidade como instituição.
Confira aqui a Carta do Encontro Nacional de Formação da CPT
“A Questão Agrária e os desafios da CPT aos 50 anos”
O Encontro Nacional de Formação da CPT ocorreu entre os dias 17 a 20 de outubro de 2023, no Centro de Pastoral Dom Fernando, em Goiânia, onde a CPT foi criada em 1975. Reafirmamos esse importante espaço de elaboração que nos faz sempre refletir e sentir, ao longo desses quase 50 anos, sobre o campo e a sociedade brasileira e nossa atuação. A formação pastoral contínua é imprescindível para nós, pois a espiritualidade libertadora está encarnada na realidade do povo, em suas lutas e resistências, na defesa dos territórios e bens comuns.
A maneira de ser-estar no mundo, a ecologia e o modo de organização da própria sociedade na base, apontam para caminhos de superação do sistema capitalista. Não precisamos depender de combustíveis fósseis e energias que não são limpas, minerações abusivas, agrotóxicos e monoculturas para produzir o modo de existir daquilo que denominamos humanidade e cumprir o amoroso Plano do Criador.
A agroecologia é um projeto integrador de relações sociais, naturais e técnicas, pois possui como horizonte, na produção de alimentos, a contribuição no combate à fome e à pobreza e o respeito à diversidade dos ritmos e modos de vida. O Bem Con-Viver é amplamente solidário, com centralidade na vida, em defesa de direitos fundamentais que garantem a pluralidade das nossas e todas as dignas existências.
A análise da conjuntura atual demonstrou como o Brasil se insere no contexto mundial, em que a hegemonia dos Estados Unidos está fortemente ameaçada, mas que quer se manter a todo custo apostando nas guerras — a da Ucrânia, a de Israel contra os palestinos e outras dezenas de conflitos armados. Com a crise do neoliberalismo, a direita e a extrema direita vão conquistando espaços cada vez maiores para ódios e violências.
Na Igreja, vimos como também estão em disputa dois modelos: o tridentino e o do Concílio Vaticano II, que o Papa Francisco quer recuperar e aprofundar. Por isso, a grande oposição que ele encontra é a tentativa de impedir avanços na sinodalidade, de dar espaço e ouvir a voz de todos e todas para caminhar juntos no caminho de Jesus nos dias de hoje.
Na tarde do primeiro dia, foi discutida a questão agrária atual e as ações realizadas em nome da Reforma Agrária, que subordinam-se à ideologia dominante e ao arranjo de poder que nunca democratizou efetivamente o acesso e o uso da terra no Brasil. Com muita luta e sofrimento de trabalhadores e trabalhadoras rurais, áreas são conquistadas e famílias assentadas, mas estes assentamentos acabam sendo uma forma de destinar ao mercado de terras áreas que antes eram de domínio público ou resgatadas. É o que se pretende com os títulos de propriedade, sem condições reais de produção e vida nos assentamentos. Trata-se, mais uma vez, de uma anti-reforma agrária, agora potencializada pelos usos da terra para novas fontes de energia, expansão minerária, mercado de carbono, entre outros empreendimentos.
Os depoimentos de Anacleta Pires da Silva, do Quilombo Santa Rita dos Pretos, no Maranhão, atingido pela Ferrovia da Vale (Ferro Carajás), por rodovias e linhões de energia; e de Roselma de Melo, de Caetés, no Pernambuco, região atingida pelos parques de energia eólica, foram impactantes. Para enfrentar a crise climática, não podemos continuar a estuprar a terra com estes grandes empreendimentos que não atacam as bases do sistema causador, mas fortalecem a lógica do capitalismo, agora mascarado de “verde”, “sustentável”.
As energias eólica e solar, vistas como alternativas limpas e eficientes para substituir as de origem fóssil, sequestradas pelo capital, revelam-se igualmente danosas. Ao se apropriarem dos territórios de ventos e luz solar, perturbam os ciclos naturais e a vida das comunidades camponesas onde se instalam. Muitas famílias destas comunidades se vêem obrigadas a abandonar suas terras por não conseguirem produzir e conviver com os impactos causados pelas torres dos parques eólicos ou pela devastação feita para instalação de imensos parques solares. As famílias deixam de ser agricultoras para serem “fornecedores de energia”, recebendo por ela insuficientes royalties. Em muitos casos, têm que procurar novas áreas ou outro modo de vida.
A resistência dos diversos povos indígenas e das comunidades camponesas tradicionais em seus territórios é o forte contraponto a este modelo. O capitalismo tudo quer transformar em mercadoria, até as falsas “soluções baseadas na natureza” criadas para “resolver” seus crescentes impactos socioambientais, reciclar-se e aproximar ainda mais do fim a humanidade e seu habitat.
Diante deste quadro amplo e preocupante, nos perguntamos: “e nós, agora, CPT, aos 50 anos?”. Com a ajuda do Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiæ (Cepis), procuramos sugerir pistas de respostas aos questionamentos e desafios. Buscamos delinear perspectivas que alimentam esperanças e possam contribuir com outros momentos deste percurso cumulativo e celebrativo dos 50 anos da CPT que, ao que parece, ainda é muito necessária aos povos do campo, das águas e das florestas e à Igreja no Brasil.
Para tanto, com ajuda do Grupo de Pesquisa GeografAR, da Universidade Federal da Bahia, iniciamos a Cartografia Social da CPT, que pretende mapear quem somos, onde estamos, com quem estamos e fazendo o quê. Discutimos três Planos de Formação para o próximo período — para grupos e comunidades, para agentes da CPT e para formadores da CPT.
Como no caminho de Emaús (Lucas 24,23-35), aqueceu nosso coração o partilhar da conversa e do pão que nos alimentam no seguimento de Jesus nas encruzilhadas desafiadoras de hoje!
Goiânia, 20 de outubro de 2023.
Por Lara Tapety | CPT-AL
Fotos: Lara Tapety
Na semana passada, nos dias 18 e 19, aconteceu o segundo Encontro de Mulheres Camponesas da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Alagoas deste ano de 2023. A atividade deu sequência aos debates iniciados em agosto, no encontro com o tema “Mulheres camponesas: empoderamento, ternura e lutas”.
A autonomia da mulher camponesa na geração de renda foi o assunto do primeiro dia do evento. Para aprender sobre isso, as participantes contaram com Maria Freitas, agente pastoral da equipe CPT na Mata Norte de Pernambuco. Ela falou brevemente seu histórico de vida e de trabalho, desde a produção de sua família no campo à experiência na associação de produtores agroecológicos e sua atuação enquanto agente pastoral.
“O objetivo foi mostrar para as mulheres que elas têm condições de ter renda a partir de seus quintais produtivos, apresentando as experiências que a gente tem em Pernambuco dentro da associação de produtores agroecológicos e também das famílias acompanhadas pela CPT, podendo fazer o beneficiamento a partir de matérias primas como a macaxeira, o jerimum, a batata doce e a banana; podendo criar novos produtos e ter a valorização e o preço justo, garantindo a geração de renda para as famílias e a autonomia das mulheres”, explicou Maria.
Já no segundo dia houve trabalhos em grupo e a explanação sobre empoderamento feminino e camponês. Michele Silva, agente pastoral da equipe da CPT Pajeú (PE), abordou o assunto a partir de perguntas e as participantes responderam expondo suas opiniões e situações. As camponesas relataram vivências de empoderamentos e libertações, como a força para cuidar de três filhos ou mais e a superação de relacionamentos violentos.
Na opinião de Michele, as mulheres demonstraram muita força. Para ela, formações como essa contribuem para que as camponesas desenvolvam mais suas falas. “A gente sente que elas ainda têm um pouco de vergonha e dizem que não sabem falar”, disse.
A avaliação da agente pastoral é que a CPT está no caminho certo para fortalecer e empoderar cada uma das participantes dos encontros.
“A reflexão que vamos levar é que a mulher camponesa precisa de ter voz e tem o direito de continuar vivendo e lutando. A vida de uma camponesa é difícil e são nesses momentos formações que elas conseguem se colocar e se libertar daquela dor que está lá no fundo. Foi um momento muito de aprendizado, de fortalecimento, de conquistas e empoderamento feminino”, concluiu Michele.
Por Rafael Barra e Márcia Palhano | CPT-MA
Fotos: Renata Alves Fortes
Entre os dias 20 e 22 de outubro, a Comissão Pastoral da Terra Sub-regional Sul – Regional Maranhão, realizou o I Encontro de Articulação das Lutas e Resistência dos Territórios e Comunidades da Região Leste e Cocais do Maranhão ameaçados pelo projeto de morte do Agronegócio. O encontro foi acolhido na comunidade Jacarezinho, município de São João do Soter, leste maranhense, onde viveu o mártir da caminhada Edvaldo Rodrigues, assassinado no ano passado. Na ocasião, estiveram reunidas 21 comunidades do Cerrado maranhense, representadas por cerca de 200 trabalhadores e trabalhadoras rurais dos municípios de Codó, Caxias, Parnarama, Matões, São João do Soter, Timbiras e Arari.
O objetivo do encontro foi articular as lutas das comunidades e territórios da região leste cocais do Maranhão, que têm sido fortemente ameaçados pela ofensiva do agronegócio sob seus lugares de vida. Cabe ressaltar que a região escolhida para realização do encontro, não por acaso, está localizada nos limites da fronteira agrícola denominada Matopiba, local que nos últimos anos tem experienciado uma das faces mais violentas e agressivas do capitalismo na exploração da natureza e destruição de modos de vida depovos e comunidades tradicionais.
Ainda, segundo os dados parciais divulgados pelo centro de documentação Dom Tomás Balduíno – Cedoc para ano de 2023, catalogados de janeiro a junho, 32% dos municípios onde foram registrados algum caso de conflito envolvendo comunidades camponesas e tradicionais estão localizados na região leste do estado. Os dados reforçam as denúncias de violações dos direitos fundamentais das pessoas e da natureza nesta localidade.
Para lutar contra essa ofensiva, comunidades vêm se articulando e se mobilizando nas lutas e resistências em seus territórios contra o latifúndio e o agronegócio que ameaçam a vida, o bioma Cerrado e a Amazônia com o avanço dos grandes projetos de morte. O momento foi de compartilhar as resistências das comunidades para se fortalecer e, juntas, criar estratégias coletivas de enfrentamento ao avanço do Matopiba sobre as comunidades e territórios ameaçados.
Texto e fotos: Comunicação CPT Juazeiro/BA
Trabalhadores/as rurais de diversas comunidades dos municípios de Campo Alegre de Lourdes, Casa Nova, Pilão Arcado, Remanso e Sento Sé participaram, na tarde da última sexta-feira (20), de uma reunião com uma Comitiva Institucional do Governo do Estado da Bahia. O encontro, realizado na Casa Dom José Rodrigues em Juazeiro (BA), foi um momento de escuta às comunidades camponesas, principalmente, em relação aos danos socioambientais provocados por empreendimentos minerários em seus territórios.
A Comitiva do Governo da Bahia foi composta por representantes da Companhia Baiana de Pesquisa Mineral (CBPM), Secretaria de Relações Institucionais (Serin), Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (SJDH), Secretaria de Ação Social e Desenvolvimento Social (Seades) e Secretaria de Promoção e Igualdade Racial (Sepromi). A reunião contou ainda com a presença do bispo da Diocese de Juazeiro, Dom Beto Breis, e de agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Conselho Pastoral dos Pescadores; integrantes do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (Sasop); do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa); do Sindicato de Trabalhadores/as Rurais de Remanso; assim como de membros/as de organizações de fundo de pasto e docentes de Universidades. Oficiais do Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros também estiveram presentes.
A professora Maria Francisca Oliveira, da comunidade Pascoal em Sento Sé, deu início à série de depoimentos dos/as trabalhadores/as. Francisca pontuou diversos problemas que os/as ribeirinhos/as vêm enfrentando desde a implantação da Tombador Iron Mineração, que extrai minério de ferro na Serra da Bicuda. “Nós estamos vivendo um inferno”, disse a professora, ao relatar que a população não consegue mais ir e vir com tranquilidade na estrada, devido ao grande fluxo de carretas; nem plantar e criar animais como antes; e que há muitas crianças sofrendo com doenças respiratórias.
“O que está chegando não é política pública, é do extermínio. Qual é o projeto do Governo do Estado para as comunidades lá? O que tá chegando pra gente, não é projeto de quem cuida, de quem zela”, desabafou Francisca. Márcio Liberato, da comunidade Retiro de Baixo, também atingida pela mineradora, complementou que as comunidades não foram ouvidas para implantação do empreendimento. “Não houve consulta prévia, nos trataram como invisíveis”.
A integrante do STR de Remanso, Beronice Ferreira, destacou que a destruição e as ameaças das mineradoras podem comprometer gravemente a segurança alimentar no território do Sertão do São Francisco. “Não tem segurança alimentar sem terra, nós não comemos minério, a gente quer as comunidades livres de mineradoras, de grilagens. O que a mata a fome é criar bode, ovelha…”.
A presidente da União das Associações de Fundo de Pasto de Pilão Arcado (UNAFPPA), Cíntia Araújo, comentou que diversas comunidades do município vêm sendo desrespeitadas pela CBPM em ações de pesquisas minerárias. João Dias, também de Pilão Arcado, afirmou que “os conflitos começam na hora da pesquisa, a empresa chega na porta de uma pessoa, não senta pra reunir com a comunidade. Mineradora é conflito”.
Os/as participantes da reunião chamaram a atenção para outros problemas que surgem após a exploração mineral, a exemplo da grilagem de terras. O caso do território de Angico dos Dias, em Campo Alegre de Lourdes, foi citado diversas vezes. O território, composto por cinco comunidades tradicionais de fundo de pasto, é atingido pela mineradora Galvani há quase 20 anos. Nos últimos anos, a população local vem enfrentando várias tentativas de grilagens de terra, inclusive, resultando em tentativas de homicídios, no dia 2 de setembro deste ano. Além disso, há cerca de duas semanas, o território de Angico dos Dias vem sendo alvo de diversos focos de incêndios. O fogo está destruindo a caatinga e roças de lideranças comunitárias.
Durante a reunião, a CPT apresentou e entregou um documento à Comitiva com diversos indícios de grilagens cartorais na região e solicitando uma apuração do Estado da Bahia sobre o assunto. A Pastoral também cobrou a punição dos autores das tentativas de homicídios em Angico dos Dias e cobrou esclarecimentos sobre a suspensão de atividades da Tombador Iron Mineração. Em comunicado oficial, neste mês de outubro, a empresa disse que suspendeu por tempo indeterminado a extração de minério devido a um evento geotécnico e condições de mercado. “Depois de destruir a vida do povo e a natureza, a mineradora diz que precisa avaliar as condições de funcionamento da mina. Onde estão os órgãos responsáveis que deram as licenças desses empreendimentos?”, ressaltou a agente da CPT Marina Rocha.
Após escutar os/as trabalhadores/as rurais e representantes das organizações populares, os integrantes da Comitiva do Governo da Bahia disseram que irão construir um relatório a partir da discussão de hoje, que será apresentado ao governador Jerônimo Rodrigues e que também servirá pata subsidiar o direcionamento de políticas públicas.
Confira a análise do Conselho Nacional dos Direitos Humanos sobre a inconstitucionalidade do PL.
O Conselho Nacional dos Direitos Humanos – CNDH publicou na última sexta-feira, 20, a nota técnica 01/2023 sobre o projeto de lei 2903/2023, o projeto do Marco Temporal, aprovado pelo Congresso Nacional. O documento analisou o projeto de lei à luz da Constituição Federal e dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos de que o Brasil é signatário e recomendou à presidência da República veto integral ao projeto. No mesmo dia, o presidente Lula vetou parcialmente o PL 2903 e retirou o Marco Temporal da proposta. O veto parcial, porém, não elimina as ameaças aos direitos territoriais dos povos indígenas.
Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), dois trechos do PL que não foram integralmente vetados por Lula geram maiores preocupações sobre violações aos direitos indígenas:
Afirmamos que o Artigo 20 é perigoso, pois pode, igualmente, abrir margem para mitigar o usufruto exclusivo, diante do conceito genérico de “interesse de política de defesa”, justificando intervenções militares nos territórios. Mesmo com essa ameaça, reforçamos que os Povos indígenas são resguardados pelo Artigo 231, §6o, da Constituição, que prevê que o relevante interesse da União deverá ser disposto por Lei Complementar e não por Lei Ordinária como é o caso do PL 2903.
Os vetos parciais de Lula seguem para análise e votação pelo Congresso Nacional, em sessão conjunta entre Deputados e Senadores, que vão decidir se acatam ou não os vetos. Caso sejam mantidos, a lei será aprovada isenta dos trechos vetados. Caso os vetos sejam derrubados, a lei será aprovada integralmente, com todas as ameaças e violações de direitos dos povos indígenas.
Diante do veto parcial, o documento do CNDH mantém sua relevância para a compreensão das inconsistências do PL, pois aponta a “manifesta” inconstitucionalidade do projeto, reafirmando o direito constitucional dos povos indígenas às terras que ocupam, garantidos nos artigos 231 e 233 da Constituição Federal. O julgamento recente do Supremo Tribunal Federal, que concluiu definitivamente pela rejeição da tese do marco temporal é retomado, mas também a convenção 196, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, que garante o direito originário dos povos indígenas a suas terras.
A nota técnica cita manifestações feitas por diversos organismos internacionais que alertam para a violação de direitos humanos que a tese do marco temporal representa, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais e Ambientais (Redesca), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o Comitê de Direitos Humanos da ONU, além de organizações brasileiras indígenas, indigenistas e do próprio Estado.
Além de apontar inconstitucionalidade da própria tese de um marco temporal, a nota aponta inconstitucionalidade nas alterações do procedimento de demarcação. De acordo com o projeto de lei aprovado, os interessados podem contestar a demarcação das terras indígenas a qualquer momento, o que, para o CNDH representa a criação de um procedimento “sem qualquer respaldo na literatura do direito administrativo ou do direito processual”. Afirma a nota que, “ao se permitir que pessoas interessadas contestem o procedimento de demarcação, a qualquer momento, o projeto de lei em exame não apenas viola o princípio da segurança jurídica, como atinge também frontalmente os princípios do devido processo legal e da razoável duração do processo”.
A inconstitucionalidade também é observada na previsão de retomada de terras indígenas por alteração de traços culturais, o que contraria a convenção 169 da OIT, que estabelece a autoidentificação como critério para a definição dos povos indígenas.
A flexibilização do usufruto exclusivo das terras indígenas, para permitir, por exemplo, atividades energéticas, ou construção de estradas, sem prévia consulta às comunidades, é considerada pelo conselho como “verdadeiro atentado jurídico”. Já a possibilidade de contato com povos isolados, prevista pela lei, desrespeita “a autonomia, o direito de autodeterminação e as legislações internacionais”, além de abrirem “potencial risco de extermínio” e genocídio dos povos isolados.
A nota ainda aponta inconstitucionalidade na previsão de indenização a não indígenas, o que é vedado expressamente pela Constituição Federal, e na permissão do cultivo de organismos geneticamente modificados, o que poderá contaminar as sementes e espécies crioulas e nativas, “comprometendo a biodiversidade, o patrimônio genético dos povos indígenas, a segurança alimentar e o bem-estar”.
O documento finaliza com o princípio da proibição de retrocesso em matéria de direitos humanos. “Os dispositivos desse projeto de lei implicam grave retrocesso em matéria de direitos humanos, atingindo preceitos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969)l, da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), da Convenção nº 169 da OIT - Organização Internacional do Trabalho, do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos”. Além de recomendar veto total ao projeto, a nota afirma que a “insistência do Poder Legislativo em inserir no ordenamento jurídico brasileiro dispositivos com manifestos conteúdos inconstitucionais, assim já declarados pela Suprema Corte, configura uma lamentável ofensa ao princípio da harmonia entre os Poderes da União e, portanto, uma violação ao disposto no art. 2º da Constituição”.
Leia a nota técnica 01/2023 na íntegra aqui.
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