COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

joãozinclar02“Mudar o mundo é uma tarefa muito maior do que a fotografia. Mudar o mundo é ter milhões de pessoas na rua contra os opressores, contra as ditaduras, é isso que muda o mundo. E a fotografia, se ela quiser cumprir esse papel, tem que andar par e passo com esses movimentos, colocando realidades objetivas e subjetivas, porque não existe realidade absoluta” - João Zinclar (1957-2013)

Assim o operário da fotografia, João Zinclar, definia seu ofício. Infelizmente, Zinclar foi vítima de um trágico acidente, que tirou a sua vida. No dia 19 de janeiro, quando voltava de um trabalho em Ipatinga (MG), o ônibus em que estava foi atingido por um caminhão, na altura do município Campos de Goytacazes, no norte do Rio de Janeiro. 

Da Página do MST, por José Coutinho Júnior

João Zinclar Lima Silva nasceu em Rio Grande (RS) em 13 de agosto de 1957. Era o mais velho de cinco irmãos. Na infância, foi bem moleque. Aprontava, brincava na rua, jogava bola e não era chegado aos estudos, tendo completado o ensino médio e nunca cursado faculdade. Sua opção foi outra.

Tinha desde jovem o espírito aventureiro pelo qual sua carreira foi marcada. Aos 18 anos, saiu de casa para se tornar hippie. “Eu não dei nada para a ditadura nessa época, pois como eu não fazia nada, eu não pagava imposto”, disse ao voltar para casa, 12 anos depois.

Aos 30 anos, começou a trabalhar como encanador mecânico, se filiou ao PCdoB e se tornou dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas. Participou do sindicato e do partido até 1996, quando se desligou, mas o sentido de coletivo e solidariedade que aprendeu no sindicato foi algo que levou por toda a sua vida e que sempre esteve presente nas suas fotos.

Em 1987, conheceu a professora Silvia Ferraro, que na época era militante do movimento estudantil. Em 1993, os dois estavam juntos, e dessa relação, que durou oito anos, nasceu Vitória, única filha de Zinclar e sua maior paixão. “O João, além de ser uma pessoa comprometida com os movimentos sociais e causas revolucionárias, era um grande companheiro e um pai muito dedicado à sua filha. Tinha uma paixão muito grande pela Vitória, e estava sempre fotografando ela. Temos milhões de fotos dela”, conta Sílvia. 

Como se interessava por fotografia, Zinclar decidiu fazer um curso básico para aprender a manusear uma câmera. Ao terminar seu curso, pediu para seu irmão Zé Perereca, o caçula da família, que na época era marinheiro e ia viajar para os Estados Unidos, que comprasse uma câmera. “A câmera que eu trouxe de lá foi a primeira do João. Desde então, ele nunca mais parou de fotografar”, afirma Zé Perereca.

Para o irmão, a fotografia era um talento nato de Zinclar. “A fotografia era um dom que nasceu com ele. Ele fez apenas um curso simples de foto, e olha só o trabalho dele. É arte com a máquina”. 

Zinclar trabalhava como freelancer e escolheu estar junto dos trabalhadores, dos indígenas e dos Sem Terra. “Foi minha condição de operário que me sensibilizou para os movimentos sociais e para a causa dos trabalhadores, eu gostava de fotografia e acabei juntando as duas coisas. Quando fiz da fotografia uma opção profissional, minha sensibilidade para as questões sociais não mudou”, declarou em uma entrevista.

O fotógrafo Douglas Mansur sente a perda do amigo. “O João fez uma opção que poucos fazem: construir e reconstruir a história dos movimentos sociais. Ele nunca se intrometeu na estrutura dos movimentos, mas tinha um posicionamento político. Seu olhar está na história dos trabalhadores. Ele não só cobria a pauta que a organização ou movimento pedia, seu olhar era mais amplo. Por conta desse olhar, ele adquiriu credibilidade, ganhou a confiança e o respeito dos movimentos da esquerda”, avalia Douglas (na foto, Zinclar, Leonardo Melgarejo e Douglas Mansur, em foto de Verena Glass em 2009)

Amizades

A credibilidade e a notoriedade de seu trabalho não foram razões para que Zinclar mudasse seu jeito de ser ou deixasse de cobrir as lutas do povo. Pelo contrário. Ele continuou trilhando seu caminho junto àqueles que produzem com suas mãos e mente as riquezas. “O único valor que ele acumulou era a paixão pela fotografia, e o amor pela Vitória. Costumo brincar que ele tinha duas filhas, a Vitória e a sua máquina fotográfica”, afirma Mansur. 

Os amigos de Zinclar, ao se lembrar do companheiro, utilizam as mesmas palavras para descrevê-lo. Ousado, por não ter medo de se aventurar em um trabalho difícil, mesmo sabendo dos riscos. 

“Teve uma vez que ele fez um projeto de ir para a Bósnia, fotografar os horrores da guerra que estava acontecendo lá. Eu apoiava ele, mas pedia secretamente para que não desse certo, pois a Vitória só tinha dois anos, e eu tinha medo de imaginar ele na guerra. A captação de recursos não deu certo, e eu fiquei mais tranquila”, lembra Silvia. 

Zinclar era humilde, não se apegava aos bens materiais. Sincero, dizia o que pensava na hora. Dedicado, era cheio de disposição e de energia para viajar ou cobrir uma pauta. Simples e generoso, por dedicar toda a sua vida e seu talento ao registro da lutas sociais. Parceiro, porque estava sempre lá, disposto a ajudar seus amigos.

Em janeiro de 2009, no aniversário de 25 anos do MST, em Sarandi (RS), Zinclar recebeu o prêmio de fotógrafo amigo do MST (na foto ao lado, de Leonardo Melgarejo). “O João é um dos grandes e melhores fotógrafos que os movimentos sociais já tiveram. Tanto pela sua qualidade estética e artística, como pela sua formação política e pela sua humildade. Foi um militante exemplar da esquerda que dedicou toda sua vida à causa dos trabalhadores e deu sua contribuição numa área tão importante, que é o registro da luta dos trabalhadores. A esquerda e o povo brasileiro perdem um dos seus melhores fotógrafos”, lamenta João Paulo Rodrigues, da coordenação nacional do MST, que conheceu o fotógrafo no Acampamento Nova Canudos, em 1999, onde foi tirada a foto do menino com o braço erguido à frente da bandeira do MST .

A cinegrafista e amiga Aline Sasahara conta que conheceu Zinclar nas coberturas das lutas sociais, mas demoraram para se tornar amigos. O que aproximou os dois foi a luta contra a transposição do Rio São Francisco. Zinclar se engajou nessa luta após ter viajado algumas vezes ao nordeste para registrar os males da seca. Isso deu a ele a ideia de registrar a vida e luta das comunidades ribeirinhas que vivem ao largo do rio. Após percorrer oito estados durante cinco anos, o resultado deste trabalho foi o livro O Rio São Francisco e as águas do Sertão. 

“Ele refez comigo o caminho do rio São Francisco, me apresentando os personagens que havia conhecido e apareciam no livro, pois eu estou fazendo um documentário sobre o rio. Ele não teve problema nenhum em partilhar seu conhecimento comigo. Agora vou terminar o documentário por ele também”, afirma a cinegrafista.

Adeus 

Zinclar, além de ter sido um exemplo de profissional e de militante, foi um exemplo de ser humano. Viveu fazendo o que gostava, sempre acreditando na opção que fez em ficar com o povo, enfrentando todos os obstáculos que adviram dessa escolha. Jamais se arrependeu de sua escolha, e por conta dessa convicção, pôde se tornar o grande e querido fotógrafo que foi.  

Em seu enterro, na tarde desta terça-feira (21/1), 500 pessoas com bandeiras de partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais diferentes prestaram homenagem ao companheiro.  “Foi a primeira vez que vi um ser humano aglutinar toda a esquerda. Quando o corpo chegou, vi todos os partidos e muitas organizações ali, em torno da figura dele. Mesmo depois de morrer, ele me deu mais esse exemplo”, afirma Zé Perereca.

No momento em que era enterrado, um pouco de água caia no caixão de Zinclar. Era do Rio São Francisco, que chegou a Campinas por meio do membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Rubens Siqueira, para se despedir do companheiro que tanto defendeu as comunidades que vivem próximas a suas águas (na foto ao lado). 

Aline acredita que o que torna Zinclar um grande fotógrafo era o seu olhar transformador. “Além de seu olhar humano e habilidade estética, tem a forma dele de colocar toda a vontade que tinha de mudar o mundo nas suas fotos. O João não fazia fotos para ganhar dinheiro, e sim para registrar os momentos de mudança. Esse comprometimento fez dele um grande profissional. Ainda bem que ele largou o macacão para pegar a câmera”, comemora.

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