COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Denunciando a inércia do Governo de René Préval e do Primeiro-Ministro Jean-Max Bellerive, os camponeses temem que a catástrofe seja utilizada como desculpa para alterações constitucionais que permitam a um pequeno grupo se perpetuar no poder.

 


 

“No Haiti há duas repúblicas, a república de Porto Príncipe e a república de fora. No Haiti, o campo é considerado como um país de fora”.

A declaração de Chavannes Jean Baptiste, coordenador do movimento camponês MPP (sigla em kreyòl para Mouvman Peyizan Papay) pode soar descomedida aos ouvidos estrangeiros. Para o observador local, entretanto, trata-se da mais óbvia das conclusões.

O Haiti possui três rodovias nacionais. Todas saem de Porto Príncipe. O Haiti possui três universidades – uma estatal e duas particulares. Todas localizadas em Porto Príncipe. No Haiti, o acesso a energia elétrica se resume a algumas horas por noite. Mas, salvo raras exceções, é preciso estar em Porto Príncipe para usufruí-la. Se uma criança nasce em qualquer um dos 133 municípios haitianos, seus pais têm de viajar a Porto Príncipe para providenciar sua documentação, já que todos os serviços públicos e a estrutura administrativa do Estado estão concentrados na capital, dos cartórios ao palácio presidencial.

Se o país fosse essencialmente urbano, com a maioria da população concentrada na capital, a explicação seria simples. Não é o caso. 66% dos mais de 10 milhões de haitianos vivem no campo. Apenas 29% residem na região metropolitana de Porto Príncipe.

De república a réplica

‘São francesas as nossas instituições, francesa a nossa legislação pública e civil, francesa a nossa literatura, francesa a nossa universidade, francesas as disciplinas de nossa escola’. Eis o que proclamava o embaixador do Haiti na França, M. Constantin Mayard, em discurso proferido no ano de 1938. É um primeiro vestígio para desvendar o porquê das duas repúblicas no Haiti.

A proclamação da independência em 1804 por Jean Jacques Dessalines não foi suficiente para romper os laços de dominação colonial francesa. Por mais de cem anos, os melhores filhos da elite haitiana foram educados em Paris e ao retornarem ao seu país tentaram construir uma réplica da civilização francesa na pequena ilha do Caribe. Para essa elite, como bem exemplifica o discurso do embaixador Mayard, a França “formou, com o molde de seu próprio gênero nacional, com o próprio sangue, a própria língua, suas instituições, seu espírito e seu solo, um tipo local, uma raça histórica, na qual a seiva da nação continua fluindo, para renová-la completamente”.

Herdeira da seiva francesa, essa raça histórica buscou reduzir o Haiti a Porto Príncipe, ao centralizar o poder econômico e político, e Porto Príncipe a um reduto francês nas Índias Ocidentais. Não é à toa que até a vigente Constituição, promulgada em 1987, o francês era a única língua usada nos atos administrativos, nas escolas, nas universidades, nas missas, nos cinemas e até nos pronunciamentos presidenciais. Isso significava a exclusão da vida pública de todo haitiano que, não sabendo ler e escrever, só se comunicava em kreyòl – o que até o final do século XX representava 75% da população.

Forasteiros no próprio país

Enquanto a elite se embebedava da seiva francesa e via com bons olhos as ocupações estadunidenses – o Haiti sofreu três intervenções militares dos Estados Unidos em menos de noventa anos –, os camponeses foram abandonados à sua própria sorte.

Sem o apoio do Estado, trabalhando como meeiros nas terras dos ‘Grandon’ (latifundiários) e praticando uma agricultura rudimentar por falta de créditos e assistência técnica, os camponeses haitianos conseguiram garantir o abastecimento alimentar do país por mais de cento e cinqüenta anos após a independência.

Entretanto, o golpe de misericórdia veio em 1957, quando o ditador François Duvalier chegou ao poder sob os auspícios do governo estadunidense. Durante os 29 anos de ditadura militar – primeiro com François Duvalier e, a partir de sua morte em 1971, com seu filho Jean Claude Duvalier – foram assassinados mais de 30.000 haitianos e a dívida externa do país subiu 40%, chegando aos dias de hoje à cifra de 1,3 bilhões de dólares.

Para piorar ainda mais a situação, a ditadura abriu as portas do país aos produtos alimentícios oriundos dos Estados Unidos – em especial, ao chamado ‘Arroz de Miami’. Até 1980, o Vale de Latibonit, maior produtor de arroz do Haiti, produzia 200 mil toneladas por ano, o suficiente para abastecer todos os cinco milhões de haitianos que habitavam o país na época. Depois da entrada do ‘Arroz de Miami’, mais barato por causa dos subsídios do governo estadunidense, a produção em Latibonit caiu vertiginosamente, chegando a atuais 76 mil toneladas por ano. O resultado desta abertura é que o país importa hoje 80% do arroz e 54% de todos os alimentos que consome.

Abandono

O terremoto que atingiu o Haiti em 12 de Janeiro de 2010 teve seu epicentro na capital Porto Príncipe, mas suas conseqüências afetaram todo o país, inclusive a zona rural. Além da perda de sementes que caíram precocemente das plantas por causa do tremor, estima-se que entre 700 mil e um milhão de pessoas migraram da capital para o campo.

Esse estrondoso êxodo urbano não foi seguido de um uma ajuda aos municípios que receberam as vítimas.  O mesmo governo haitiano que incentivou a saída dos grandes centros urbanos não se preocupou com as conseqüências que o campo, já relegado, teria de arcar. Há municípios que triplicaram sua população após o terremoto. Muitas famílias camponesas aumentaram em 50% o número de pessoas em suas casas, e se viram obrigadas a usar para alimentação as sementes que estavam reservadas para o plantio.

De acordo com dados fornecidos pelo prefeito Touillo Pierre, o município de Ti Rivye, localizado no departamento de Latibonit, recebeu 6.793 pessoas depois do terremoto. A ajuda a esses migrantes ficou a cargo das próprias famílias que os acolheram, já que o município não recebeu nenhum recurso do Estado. A única ajuda veio de uma ONG, a estadunidense WorldVision, que pincelou 500 das 6.793 pessoas para prestar ajuda humanitária. O prefeito Pierre não sabe informar os valores dessa ajuda, já que a atuação da ONG é autônoma e não presta contas a nenhuma instância da prefeitura.

É diante desse quadro de abandono que as organizações camponesas que compõem a Via Campesina haitiana questionam “Quando observamos o presidente Prèval falar de reconstrução, transformando-a na sua meta principal, nós não sabemos de que reconstrução ele está falando. É a reconstrução da ‘república de Porto Príncipe’ somente?”

Reconstrução

Reunidos em assembléia no início de abril, os quatro movimentos haitianos que compõem a Via Campesina no país – MPP (Mouvman Peyizan Papay), TK (Tét Kole Ti Peyizan Ayisyen), KROS (Kòdinasyon Rejyonal Òganizasyon Sidès), MPNKP (Mouvman Peyizan Nasyonal Kongrè Papay) – analisaram que “a situação do país, que já era precária antes de 12 de janeiro, se tornou insustentável depois do terremoto que abalou nossa nação, evidenciando a debilidade do Estado que não é capaz de reagir perante a condição em que o país se encontra”.

Denunciando a inércia do Governo de René Préval e do Primeiro-Ministro Jean-Max Bellerive, os camponeses temem que a catástrofe seja utilizada como desculpa para alterações constitucionais que permitam a um pequeno grupo se perpetuar no poder.

Para os movimentos, a reconstrução do país deve ser encarada como uma oportunidade de descentralização do poder e dos serviços públicos que se encontram concentrados na capital Porto Príncipe e afirmam que “a produção nacional, em especial a produção agrícola e a reforma agrária, deve ser uma prioridade no plano de reconstrução”.

Falar em descentralização do poder no Haiti não significa, na opinião dos movimentos camponeses, resolver um mero problema de autonomia administrativa para municípios e departamentos. Mais que isso, significa a efetiva participação popular nas instâncias de poder e decisão.

Infelizmente para os movimentos camponeses, a participação popular não vem sendo a tônica desse processo. O Plano de Reconstrução do Haiti foi delineado bem longe do país, nos escritórios das Nações Unidas em Nova Iorque. Seus arquitetos, Estados Unidos e União Européia, mais preocupados em saber como suas empresas irão investir os U$ 5,3 bilhões a serem geridos pelo Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional na reconstrução do país, não buscaram a opinião do povo haitiano.

De fato, a participação popular tem sido praticamente inexistente nos últimos anos no Haiti, já que o país sofre uma dupla ocupação militar. A primeira instituída em 2004 pela ONU através das tropas da MINUSTAH coordenadas pelo exército brasileiro.

A segunda, mais recente e numerosa, iniciada logo após o terremoto de 12 de Janeiro, quando mais de 12.000 soldados estadunidenses desembarcaram no país e, de pronto, tomaram para si o controle do porto e do aeroporto de Porto Príncipe sob a justificativa de facilitar a ajuda humanitária. Passados mais de três meses da catástrofe, das ruínas ainda se exala um cheiro forte de morte, mas não se vê nenhuma movimentação por parte das tropas militares para a retirada dos escombros e dos corpos.

Diante de tantos soldados, interesses, empresas e nações, e sem a participação popular, a oportunidade de superar a cisão histórica que dividiu o Haiti entre a “república de Porto Príncipe” e a “república de fora” pode se perder. Mais que isso, se o processo de reconstrução seguir a trilha proposta pelos escritórios de Nova Iorque, é provável que todo o Haiti se transforme num “país de fora”.

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